Feita a enquete, vamos aos resultados. Alguns escritores e críticos responderam: ter uma vida cheia de vai-e-vem é pré-requisito para que haja boa literatura? Precisamente: escritores precisam ser grandes aventureiros para ter realmente o que dizer?
Santiago Nazarian (Olívio e A morte sem nome)
“Não acredito em fórmulas prontas. Alguns escritores habitam o tédio de uma morosa vida cotidiana, e isso é o que os motiva a criar além. Já outros, precisam de combustível externo, tragédias e aventuras para garantir inspiração. Eu mesmo transito entre os dois lados, preciso dos meus momentos de recolhimento, mas também busco a transformação.”
Ana Paula Maia (A guerra dos bastardos)
“Escritores sabem inventar, mentir, sugerir e convencer; desde que haja talento para isso. Com um punhado de palavras, imaginação e bastante artimanha é possível ter bons escritores vivendo poucas experiências intensas e elaborando boas histórias. Dá para se ter bons escritores inclusive ganhando dinheiro modestamente.”
Simone Campos (Amostragem complexa)
“Não é pré-requisito, de forma alguma. Primeiro precisa acabar esse preconceito: pessoas com vidas bestas OU vidas movimentadas podem escrever livros bons OU ruins, sejam eles autobiográficos OU não.
Mas o escritor também não pode deixar de sair à rua. Não fazer nem o próprio supermercado faz com que a pessoa comece a se sentir distante da humanidade, só encontre interesse na própria cutícula, e assim ninguém consegue escrever bem. Nem ficção, nem autobiografia.
Não sei por que as pessoas prestam atenção à vida do escritor. É vício de jornalista, mesmo. Porque como leitora, não procuro saber isso; não procuro ler suas cartas de amor nem saber quem ele comia. Procuro ler mais do que ele escreveu. Mas pra quem gosta de ser (e ler) autobiográfico, é preciso rever o conceito do que seja uma vida besta ou novidadeira. Um jovem encher a cara e transar com desconhecidos regularmente já é lugar-comum, por exemplo. Um jovem religioso que sai para ir ao funk de Cristo e participa de evangelizações em hospícios e hospitais -- esse cara sim vê coisas novas todo dia. O importante é o olhar. Eu acho.”
Ignácio de Loyola Brandão (Veia bailarina e outros tantos)
“Julio Verne não precisou viver uma vida aventureira e louca para escrever os livros que escreveu. E Kafka que era funcionário de uma seguradora? Acaso Isaac Asimov foi um doido a percorrer galáxias? E Orígenes Lessa que era um publicitário atrelado a sua mesa? Sim, Dostoievski sofreu para burro e veja que obra criou. Acaso Rice Burroughs viveu na África entre macacos para escrever a sua serie Tarzan? Ora, cada um tem a vida que tem, louca, aventureira ou prosaica.
O que interessa é a cabeça, a imaginação, a loucura no coração, o desejo de fazer coisas. Os livros nascem muitas vezes do contrário de nossas vidas. Neles colocamos aquilo que não somos, mas gostaríamos de ser. Machado de Assis teve vida intensa? E Graciliano Ramos? E Leo Vaz? Prossigo. Jack London, sim, teve uma vida aventureira, explosiva. Também Hemingway: caçador, boxeador, pescador, caçador de espiões. Para contrapor a ele, temos Faulkner, recluso em seu sítio no interior dos Estados Unidos, e Salinger, que fechou as portas e não recebe ninguém? Cervantes também foi soldado, foi ferido, ficou manco. Também Robert Louis Stevenson andou em viagens por toda a parte. Mas e Jorge Luis Borges? Pacato, cego, elocubrando mentalmente tudo. E o nosso Campos de Carvalho, revolucionário e porra-louca apenas nos textos? E o nosso Marcos Rey, doente, andando com dificuldade, sempre encerrado em seu escritório? Bom lembrar também o genial Xavier de Maistre com aquela obra-prima Viagem ao Redor do Meu Quarto, um clássico da literatura francesa. Sem esquecer Proust, que escreveu sempre encerrado em seu apartamento em Paris.”
Jonas Lopes, crítico de literatura
“Manter esse contraponto entre uma vida ativa e outra imóvel, atribuindo maior ou menor valor a alguma delas, tira da literatura uma de suas principais qualidades - que vale também para a música, a filosofia, as artes plásticas etc.: a subjetividade apaixonante que faz com que um grande romance nos surpreenda. Assim, da mesma forma que Cervantes e Conrad carregam um currículo movimentado, de grandes feitos e de tragédias (no caso do autor do Quixote, que perdeu a mão numa batalha naval) e, por meio dessas experiências, escreveram obras-primas, Borges ou Flaubert (que moraram com as mães até alta idade) tiveram uma existência que muita gente consideraria medíocre. A tendência, de modo geral, é menosprezar quem escolhe passar os anos trabalhando num escritório. Henry James é, na minha opinião, a resposta suprema a isso. Mesmo com um cotidiano monástico e metódico, James radiografou como pouquíssimos o comportamento humano em trabalhos como A Taça de Ouro, As Asas da Pomba e A Fera na Selva. Não há regras, portanto; apenas escolhas.”
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