Pular para o conteúdo principal

LEITURAS DO PASSADO


INDICADO A CINCO OSCARS, O LEITOR, DE STEPHEN DALDRY, O MESMO DE AS HORAS, ESTRÉIA HOJE NOS CINEMAS. NA TRAMA, CULPA, AMOR E VERDADE ENTRELAÇAM-SE NUMA REVISÃO DO PASSADO ALEMÃO

HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO

Até que ponto uma pessoa pode enganar-se? Dito de outra forma: até que ponto uma sociedade pode construir em torno de si uma verdade e abraçá-la com toda a força de que seu corpo e mente são capazes? O leitor (The reader), filme inspirado no romance do alemão Bernhard Schlink, coloca-se essas e outras questões. Mais que pano de fundo ao inebriante affair vivido entre um adolescente de 15 anos (Michael Berg) e uma mulher de 36 (Hanna Schmitz), os problemas de ordem moral e filosófica parecem servir de linhas-mestras à narrativa. Levado às telas por Stephen Daldry, o mesmo de As Horas, com Ralph Fiennes e Kate Winslet nos papéis de Michael e Hanna, o longa, que estréia hoje no País sob o peso de suas cinco indicações ao Oscar, deve materializar os lusco-fuscos de julgamento apresentados no livro de Schlink.

Publicado no Brasil em 1995, O leitor (Der Vorleser) apresenta um cenário de destroços e um tema que confronta diferentes gerações de alemães: o holocausto judeu. No pós-guerra do país, Michael conhece uma mulher misteriosa, a quem passa a ler Homero, Kafka, Goeth. O encontro entre ambos acontece na rua, onde, depois de uma crise que precipitaria sua hepatite, Michael é acudido por Hanna, uma cobradora de bonde que vive sozinha num prédio dividido entre beleza e feiúra. Uma construção de fachada luxuosa e interior sombrio. Na entrada, tijolos, portas e janelas criam uma expectativa de encantamento. Dentro, ainda à soleira do apartamento de Hanna, para onde Michael é levado, faltam partes do corrimão, a iluminação não é suficiente. Há poeira por toda parte.

Numa Alemanha cujo passado apenas começava a ser revisto, fachada e interior não combinam. Lá, jovens espantam-se com as atrocidades cometidas alguns anos antes. Durante a guerra, centenas de milhares de pessoas foram confinadas em campos de concentração e enviadas para câmaras de gás. Mulheres, crianças, homens, velhos. Não à toa, o reencontro entre Hanna e Michael tem como cenário um fórum onde crimes nazistas são julgados. Distantes um do outro, os ex-amantes entreolham-se. Revogam suas culpas ou as confirmam?

A série de descompassos entre passado e presente evidencia-se cada vez mais. Verdade e mentira, beleza e feiúra, passado e presente. Escrito por um professor de Direito e Filosofia, O leitor mobiliza um número razoável de conceitos que, ao longo do tempo, foram responsáveis pela consolidação das sociedades modernas. O primeiro deles: o conceito de justiça. Outro: o de verdade. Entre verdade e justiça, a narrativa questiona os papéis desempenhados por cada cidadão durante o holocausto. Para Schlink, não apenas carrascos e oficiais da SS devem ir a júri. Michael, o narrador, promove secretamente o seu próprio julgamento.

Um terceiro elemento presente em O leitor: a culpa. Elementar, esse sentimento enovela todos os personagens da história filmada por Daldry. No romance, Michael, um advogado bem-sucedido, pai da pequena Julia, divorciado e amargo, pergunta-se: “Eu permaneci culpado todo esse tempo?” Também ele tem sua parcela de responsabilidade, sua quota de cinismo que, no final, iguala uns e outros: carrascos e homens de boa-fé. De modo sutil, Schlink tece uma rede de pequenas interrogações cujas repostas apenas aproximam Michael e Hanna. Ligados no passado por um caso de verão, pela leitura dos livros que Hanna pedia a Michael para fazer (“na sua voz é melhor”), os personagens têm suas trajetórias partilhadas. Suas culpas, temores, desejos e fantasias encontram guarida no outro. Para Schlink, a identificação vai além. Em algum momento, os atos de Hanna e Michael tornam-se equivalentes. Têm pesos iguais, decidem sobre vida e morte da mesma da mesma maneira.

SERVIÇO:

O leitor (The reader, 2009), de Stephen Daldry (As Horas), com Ralph Fiennes, Kate Winslet e David Kross. Estréia hoje.

EMAIS

O longa-metragem O leitor, de Stephen Daldry, foi indicado a cinco estatuetas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hoolywood: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Kate Winslet, ganhadora do Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante por seu trabalho em Foi apenas um sonho, filme de Sam Mendes indicado a três Oscars), Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Fotografia.

Antes de ter seu nome confirmado em O leitor, Kate Winslet viu o papel de Hanna Schmitz cair nas mãos de Nicole Kidman e Juliette Binoche. Grávida, Kidman afastou-se. Depois de encerrar as gravações do longa Foi apenas um sonho, Winslet voltou a fazer parte do elenco da produção.

O leitor, romance de Bernhard Schlink, foi o primeiro romance alemão a encabeçar a lista do jornal norte-americano New York Times.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d