O EVANGELHO DO ELEFANTE
AS VONTADES MAIS SECRETAS DE UM ELEFANTE QUE, SEM MAIORES RESISTÊNCIAS, É GUIADO – OU GUIA – DE LISBOA A VIENA POR CAMINHOS NEM SEMPRE PLANOS E SOB UM TEMPO NEM SEMPRE BOM
A viagem do elefante, novo conto-romance de José Saramago, narra a história de salomão - com inicial minúscula mesmo –, um paquiderme indiano, e o seu tratador, o cornaca subhro, um homem a quem a desventura de ter sido demovido de lugar – de Lisboa para Viena, ainda no século XVI – implicou numa grande e maravilhosa transformação, como que premiada ao fim de uma jornada extenuante. Acompanhando o elefante durante todo o deslocamento entre uma e outra cidade, subhro, que em língua indiana traduz-se por “branco”, vai deparando, ora entendendo, ora não, os vários matizes da vida. Salomão - o animal, não a histórica figura -, presente de João III, então rei de Portugal, ao seu primo, o arquiduque da Áustria Maximiliano II, tem papel de agente catalisador. Sem pronunciar uma palavra – porque não está capacitado para tanto – mas absolutamente milagreiro segundo os ofícios da igreja da época, o animal ocupa o centro do palco, deixando vazios os lados e a frente para que desfile a moral dos homens.
Subhro, por Saramago, nos diz: “O elefante, já lho disse no outro dia, é outra coisa, em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo”. Um pouco antes, o tratador, no livro adjetivado cornaca, assegura: “Creio que na cabeça de salomão o não querer e o não saber se confundem numa grande interrogação sobre o mundo em que o puseram a viver, aliás, penso que nessa interrogação nos encontramos todos, nós e os elefantes”. É claro, portanto, que elefante é essa “outra coisa” que a ambição humana – numa leitura mais geral – põe em movimento. Supõe-se que o animal não tenha critérios e, por isso mesmo, esteja impedido de gostar ou desgostar. É vítima nesse circo. Não casualmente, o escritor usa essa mesma metáfora para se referir a salomão, que, a certa altura, passa a ser alvo de uma igreja católica acuada pela onda protestante, mas seguramente ciente de que vai ter de entrar na lama caso não queira perder o seu rebanho. E assim salomão se torna milagreiro por obra e força divina. O suporte é divino, mas a mão-de-obra é humana, o que, vindo de Saramago, quer dizer mais ou menos que os desígnios de deus, já por aqueles dias, nem sempre entravam em consonância com os afazeres do homem de fé.
Assim homem e bicho dão início a uma caminhada que, sob sol e chuva, ventos e tempestades, e sempre acossada por outras feras – sejam os lobos famintos, seja o próprio rebanho cristão -, é tanto mais interessante quanto mais demonstra que, enquanto a uns o exótico salomão assemelha-se às divindades, a outros a corpulenta criatura dotada de presas alvíssimas e uma tromba que se verga sob o comando de um feiticeiro, esse animal estranhíssimo de um modo ou outro deve cedo vir a receber a visita de um padre. E dos bons. De fato, é o que acontece, quando salomão encontra-se – na verdade vão ao seu encontro e não o contrário – com um homem de deus e este asperge algumas gotas de água benta na sua couraça infiel. O mais que acontece pode ser debitado à sabedoria da natureza.
Nesse trajeto, salomão passa de mãos, do reino de Portugal ao de Áustria, mas sem se alterarem grandemente os sustos e as condições. Mudam-se os nomes: salomão vira solimão e o impronunciável subhro, fritz. A decisão toma-se tendo em vista o melhor entendimento do povo germânico, assim justifica-se Maximiliano. Mas, o tratador encerra, “no fundo, talvez os homens e os elefantes não cheguem a entender-se nunca”. Embora conduzido por dias e dias, o elefante permanece incógnito. Suas razões e sentimentos são adivinhados, nunca sabidos de todo. Mesmo quando interpretadas por um perito. “Se vossa alteza conhecesse os elefantes como eu tenho a pretensão de conhecer, saberia que para um elefante indiano qualquer lugar em que se encontre é índia”, considera agora fritz.
Ocorre, porém, que homens e elefantes não se dão costumeiramente as mãos. Salomão, que, “em realidade, era um ser outro, tão outro que nada tinha que ver com este mundo, governava-se por regras que não se inseriam em nenhum código moral conhecido”, ia e vinha e, em ambas as partes, despertava grande comoção. Houve quem o proclamasse fantástico, mas logo as suas dejeções punham todos desanimados. Daí suas razões, seus motivos, esses permaneciam intactos, mergulhados numa impossibilidade. Ainda quando os aldeões o recebem de braços abertos, ainda quando é convertido em herói, ainda quando obra milagres. E o fim de tudo coroa esse sentimento de que a viagem é feita, mas o caminho, o que importa no fim, esse passa sem que se perceba.
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AS VONTADES MAIS SECRETAS DE UM ELEFANTE QUE, SEM MAIORES RESISTÊNCIAS, É GUIADO – OU GUIA – DE LISBOA A VIENA POR CAMINHOS NEM SEMPRE PLANOS E SOB UM TEMPO NEM SEMPRE BOM
A viagem do elefante, novo conto-romance de José Saramago, narra a história de salomão - com inicial minúscula mesmo –, um paquiderme indiano, e o seu tratador, o cornaca subhro, um homem a quem a desventura de ter sido demovido de lugar – de Lisboa para Viena, ainda no século XVI – implicou numa grande e maravilhosa transformação, como que premiada ao fim de uma jornada extenuante. Acompanhando o elefante durante todo o deslocamento entre uma e outra cidade, subhro, que em língua indiana traduz-se por “branco”, vai deparando, ora entendendo, ora não, os vários matizes da vida. Salomão - o animal, não a histórica figura -, presente de João III, então rei de Portugal, ao seu primo, o arquiduque da Áustria Maximiliano II, tem papel de agente catalisador. Sem pronunciar uma palavra – porque não está capacitado para tanto – mas absolutamente milagreiro segundo os ofícios da igreja da época, o animal ocupa o centro do palco, deixando vazios os lados e a frente para que desfile a moral dos homens.
Subhro, por Saramago, nos diz: “O elefante, já lho disse no outro dia, é outra coisa, em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo”. Um pouco antes, o tratador, no livro adjetivado cornaca, assegura: “Creio que na cabeça de salomão o não querer e o não saber se confundem numa grande interrogação sobre o mundo em que o puseram a viver, aliás, penso que nessa interrogação nos encontramos todos, nós e os elefantes”. É claro, portanto, que elefante é essa “outra coisa” que a ambição humana – numa leitura mais geral – põe em movimento. Supõe-se que o animal não tenha critérios e, por isso mesmo, esteja impedido de gostar ou desgostar. É vítima nesse circo. Não casualmente, o escritor usa essa mesma metáfora para se referir a salomão, que, a certa altura, passa a ser alvo de uma igreja católica acuada pela onda protestante, mas seguramente ciente de que vai ter de entrar na lama caso não queira perder o seu rebanho. E assim salomão se torna milagreiro por obra e força divina. O suporte é divino, mas a mão-de-obra é humana, o que, vindo de Saramago, quer dizer mais ou menos que os desígnios de deus, já por aqueles dias, nem sempre entravam em consonância com os afazeres do homem de fé.
Assim homem e bicho dão início a uma caminhada que, sob sol e chuva, ventos e tempestades, e sempre acossada por outras feras – sejam os lobos famintos, seja o próprio rebanho cristão -, é tanto mais interessante quanto mais demonstra que, enquanto a uns o exótico salomão assemelha-se às divindades, a outros a corpulenta criatura dotada de presas alvíssimas e uma tromba que se verga sob o comando de um feiticeiro, esse animal estranhíssimo de um modo ou outro deve cedo vir a receber a visita de um padre. E dos bons. De fato, é o que acontece, quando salomão encontra-se – na verdade vão ao seu encontro e não o contrário – com um homem de deus e este asperge algumas gotas de água benta na sua couraça infiel. O mais que acontece pode ser debitado à sabedoria da natureza.
Nesse trajeto, salomão passa de mãos, do reino de Portugal ao de Áustria, mas sem se alterarem grandemente os sustos e as condições. Mudam-se os nomes: salomão vira solimão e o impronunciável subhro, fritz. A decisão toma-se tendo em vista o melhor entendimento do povo germânico, assim justifica-se Maximiliano. Mas, o tratador encerra, “no fundo, talvez os homens e os elefantes não cheguem a entender-se nunca”. Embora conduzido por dias e dias, o elefante permanece incógnito. Suas razões e sentimentos são adivinhados, nunca sabidos de todo. Mesmo quando interpretadas por um perito. “Se vossa alteza conhecesse os elefantes como eu tenho a pretensão de conhecer, saberia que para um elefante indiano qualquer lugar em que se encontre é índia”, considera agora fritz.
Ocorre, porém, que homens e elefantes não se dão costumeiramente as mãos. Salomão, que, “em realidade, era um ser outro, tão outro que nada tinha que ver com este mundo, governava-se por regras que não se inseriam em nenhum código moral conhecido”, ia e vinha e, em ambas as partes, despertava grande comoção. Houve quem o proclamasse fantástico, mas logo as suas dejeções punham todos desanimados. Daí suas razões, seus motivos, esses permaneciam intactos, mergulhados numa impossibilidade. Ainda quando os aldeões o recebem de braços abertos, ainda quando é convertido em herói, ainda quando obra milagres. E o fim de tudo coroa esse sentimento de que a viagem é feita, mas o caminho, o que importa no fim, esse passa sem que se perceba.
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