Pular para o conteúdo principal

"F"...

Tem um cheiro de bexiga no ar. Sinto isso. Desde o começo da noite, quando voltei da churrascaria com a barriga empanturrada de cerveja e peixe.

Peixe sabe nadar em cerveja? Não se estiver morto. Não se a cerveja estiver quente. Não se for peixe de cerveja gelada nadando em cerveja quente – era isso que desde o início pretendia dizer e não disse.

HOJE VOU CONTAR UM SEGREDO. Tenho problemas com o “f” do teclado. Quando menos espero, ele está lá. Geralmente no final das sentenças. Porque sofro de incontinência digital. Explico depois.

Interrompo: são exatamente 23h19 minutos na minha rua, que fica numa zona cinzenta entre a Parquelândia, o Parque Araxá, o São Gerardo e outra localidade cujo nome não lembro.

Lembrei: Alagadiço.

Voltemos: são 23h20 – o tempo passou enquanto escrevia - e todas as crianças da rua estão soltas, andando de bicicleta ou correndo. Ou trepando-se na grade da porta. Ou conversando debaixo da minha janela. Milagre? Não exatamente. Aqui a vida corre noutros termos. F...

Porque moramos numa rua pobre. Sim, crianças pobres brincam até tarde da noite. De férias da escola, brincam mais ainda. Sim, é uma discussão epistemológica. Não, é não. Pobre é pobre. Brincadeira é brincadeira. Tudo branco no preto. Ou, com cota, preto no branco.

Mas é bem mais comum preto no branco.


TINHA ESSA MENINA FANTASIADA

Ontem fomos à formatura da prima. FOI legal. Bebi duas cervejas. Comi salgados com sabor de alho. Acho que carregaram no tempero. De qualquer forma, lamentei de cara que uma garota estivesse vestida de assecla da Rainha dos Baixinhos quando todas as outras haviam ido preparadas para abalar: longos pretos ou vestidinhos tipicamente debutantes, com frufrus – não lembro o nome da coisa, da coisa técnica. Seria decalque? - sobrando bastante nas mangas, grandes extensões de tecidos armados, porções incríveis de caldas arrastando-se e dificultando mais ainda os trabalhos dos garçons.

E penteados extravagantes, do tipo que param um comício do Obama. Quando o Obama ainda era candidato a qualquer coisa bem distante daqui.

Então ela estava ali, sentada com a mãe e o irmãozinho mais novo dois ou três anos. Vestida de paquita. Era a única fantasiada. Sabem por quê? Porque alguém esqueceu de avisá-la que a festinha à fantasia, como queriam todos, tinha sido repentinamente cancelada.

Ela, que era bonitinha, uns quilinhos a mais mas dona de uma beleza que cativa, os cabelos bem pretos escorrendo nas costas muito brancas, esperou alguns minutos até que finalmente se convenceu de que a coisa da fantasia tinha sido deixada de lado horas antes da festa propriamente dita. Então ela se retirou e voltou de preto. Na hora das apresentações dos concludentes do nono ano da escola, foi aplaudida timidamente.


O RESTO DA NOITE

O resto da noite foi legal. A prima agora vai fazer o primeiro ano. Vai estudar mais ainda. É uma menina responsável, séria. FOI a oradora oficial da turma. Eu fiquei todo orgulhoso. Porque fiz umas correções no discurso dez ou quinze minutos antes de ela subir num palanque e falar toda a coisa que havia sido incumbida de falar.

Primeiro, vi os erros. Uma preposição extemporânea e um problema de concordância. Vi e calei. Não queira que ela ficasse mais nervosa ainda. Por insistência de minha esposa, acabei abrindo a boca. Jurava que ela não fosse lembrar na hora da leitura. Afinal, com tanta gente presente, os pais, parentes, amigos, namorado, professores, alunos de outras turmas, quem se lembraria de uma preposição e uma concordância mal-feita?

Ela lembrou. Final feliz. Depois ficou esperando que um bando de gente falasse as besteiras de sempre – mas numa versão piorada. Ora, que dizer do mestre-de-cerimônias (que também ensina matemática na escola e é, ao mesmo tempo, filha da proprietária)? Às tantas, sem pedir licença para peidar, soltou isto: “O brilho de vocês ofusca a minha visão”.

Gente, não sabe brincar não brinca.

Depois e antes disso, o cara ficava pedindo que todos participassem desse “momento lindo”. Ora, os pais só queriam ver seus filhos atravessar uma armação florida bem parecida com um túnel, mas aberto nas laterais, tirar suas fotografias, comer e ir embora. Os professores, encher a cara, comer e ir embora. Terceiros como eu, relembrar os velhos tempos de estudante – há dez anos não punha os pés naquela quadra -, comer, beber e ir embora. Os concludentes, comer, festejar o fim desse ciclo de torturas e amizades, dar uns beijos e ir embora.

O que só fizemos às 2 horas da manhã. Saímos caminhando por uma avenida feia. Em casa, tomei banho e dormi. No dia seguinte me perguntaram se os ratos tinham dado trégua. Bom, eu disse “Sim, eles nem apareceram no quarto”.


AQUI RETOMO

Aqui retomo a narrativa inicial do domingo. Disse que contaria um segredo. Bom, não tem mistério. Quando escrevo, passo sempre do fim das palavras. Da última sílaba, entenda-se. E acabo batucando odiosamente no “f” a cada vez que tento escrever muito rápido. É um defeito de digitação.

Alguém quer me contar como termina “O nevoeiro”, aquele filme baseado num romance/conto do King?


AQUI RETOMO A FESTA

Tinha também essa menina que destoava das outras. Cabelos em três cores: preto ou castanho, violeta e louro alaranjado. Era duas ou três vezes maior que boneca Barbie e se vestia como uma roqueira mirim. Usava na cabeça um desses chapeuzinhos caídos para o lado que virou moda entre as teens. Era uma figura. Achava que fosse debutante descolada do nono ano. Nem era. Apenas convidada.

Ontem fiquei pensando: foi uma bobagem não ter ido a minha festa de conclusão de curso. Foi sim. Não faltarei à de formatura.



AINDA ESTOU

Ainda estou lendo a coluna de domingo do Marcelo Gleiser. Por isso nem comento. Ele está falando do filme “O dia em que a Terra parou”, que é uma versão de outro, gravado ainda nos anos 1950, salvo engano. Salvo engano também, tem o Keanu Reeves.

Mas e daí? Ele diz (Gleiser): “Somos primitivos, moralmente e ecologicamente”.

“F”...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d