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Um conto atípico de Natal

 

Voltei do conserto, não eu, quem dera, porque estou precisando de reparos depois de jogar futebol e sofrer avarias severas nos dois pés, ambos agora inchados.

Encontrei uma tecla nova para o notebook entre muitas que não me serviam. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo da Cidade 2000, bairro peculiar de Fortaleza, tal como a Praia do Futuro, lugares que enunciam desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente, um aceno a certo horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento sempre por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferecendo sempre uma promessa.

Um acidente qualquer no teclado e tudo se desmonta, toda a dicção e a segurança, certo jeito de batucar as palavras que se perde tão logo uma delas salta como dente mole. Num instante, temos a parte avulsa na palma da mão, imprestável para mais nada, o fragmento mágico da couraça de um animal antediluviano.

É aí que entramos nessa roda-vida de circuitos informáticos, conhecemos de perto o regime burocrático dos pequenos negócios cujos atendentes presumem sempre que do outro lado da linha haja alguém especializado no assunto, o mau humor de técnicos em fim de expediente dispostos a selar o futuro de uma máquina com uma única sentença lapidar.

De repente, já não sei escrever, me pergunto se teria escolhido tal ou qual palavra, se teria enveredado por esse assunto e não por outro, se estaria agora lembrando que tudo se dá dessa maneira, a consciência de que o processo se cumpre assim e não de outra forma, tudo porque a peça se deslocou, porque o passo a passo falhou, o passo de dança e o passo da receita de bolo.

Num momento, a haste de metal se prendia a um gancho plástico que fixava o conjunto, fazendo-o saltar como todos os outros, acionando o mecanismo que dispara o comando para fazer com que a barra recue, o mesmo procedimento empregado em todas as demais partes do mesmo aparelho.

E agora isto.

É como uma roupa dentro da qual sentimos que somos um outro, um sapato dois números maior ou menor, ou seja, objetos cuja natureza evidencia a costura e o caráter postiço de tudo que é extensão do corpo, de tudo que funciona bem até finalmente quebrar e carecer de um conserto, feito por alguém especializado.

Chama-se “Backspace”, na verdade, e não sei bem se se traduz como recuo, eu é que leio assim, porque é bem isso que ela faz, leva a escrita para antes do escrito, ajuda a desfazer o feito e melhorar o que parecia bem acabado.

No começo da tarde, já no meio do trabalho, a tecla se afrouxou, como tijolo que escapasse da construção, mal assentado que estava. Ela cai e eu devolvo a seu lugar. Ficamos nisso um bom tempo, gato e rato, insisto por alguns parágrafos, mas depois tenho de parar. Até que já não há possibilidade de concentração.

Talvez esse episódio tenha me ensinado algo, mas o quê? Penso na dependência da tecla do recuo, de escrever sempre avançando e retrocedendo, do cacoete de digitar as mesmas letras em sequência, apagá-las para só então enfileirar o que de fato era o que pretendia escrever.

Quem sabe tudo não passe de um espasmo muscular, uma reação qualquer do corpo ao teclado, ao concreto do plástico, ao material que toco enquanto penso. Ao ato de pensar enquanto penso sobre o que pensar, de modo que bater na tecla sem direção prévia constitua já uma abertura para o pensamento, instaurando essa ordem dentro da qual o pensamento se formula em meio a letras desordenadas.

Do malfeito se molda o que pode ter o feitio de outra coisa, a partir da qual o texto vai ganhando uma topografia. Nessa circularidade, nesse jogo de ir e vir, portanto, o mero exercício motor, mesmo o barulho do som da tecla soando próxima, seja uma espécie de estímulo que conduz a outras letras, estas, sim, significativas?

Não sei, penso agora na fachada da loja de informática, um estabelecimento como esses que havia aos montes nos anos de 1990 até o início dos 2000, pequenos universos mágicos nos quais teclados e periféricos de computadores – era assim que se chamavam – brilhavam, e o sonho de todo garoto era montar um PC para jogar e navegar pela internet, então um descampado inexplorado.

A loja ao lado de bares e em frente a bares e perto de outros bares nos quais homens e mulheres já bebiam às 14 horas de uma segunda-feira, antevéspera do Natal, um dia como outro qualquer, mas não como outro qualquer, já que por perto havia esse movimento ordinário de compras do dia e o extraordinário das compras de fim de ano, esses regimes misturados de tempo criando uma fissura dimensional naquele pedaço da cidade.

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