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Fim da livraria

 

A livraria fechou, e sobre isso não disse nada, não sei se porque desejei ignorar a notícia ou porque de fato a loja já havia se fechado para mim, de modo que, quando efetivamente cerrou as portas, não sentia mais falta, não era mais um frequentador desde muito.

Estive no lugar com assiduidade nos anos de 2010, às vezes pela tarde, noutras pela noite, quando ia em procura de sossego, sem ter motivo aparente ou qualquer objetivo de compra. Chegava às cegas, procurava um canto mais escondido no café, sentava por um tempo e ficava à toa. Cumpria um roteiro que fui construindo a cada visita.

Começava no primeiro pavimento, dava uma volta nas estantes de romances, circundava a pilha na entrada e espiava os mais vendidos, sempre disfarçando a curiosidade, com medo de que me confundissem com o tipo de leitor que escolhe um livro porque está em destaque.

Depois disso, eu subia as escadas, parava na seção de ciências, de onde saltava para a de quadrinhos e, em seguida, para a de cinema, descendo então pela escada oposta e fechando o círculo, que podia se reiniciar a depender do dia, do ânimo.

Eventualmente saía com alguma coisa mesmo que não precisasse, que soubesse que ficaria na mesa do quarto esperando sabe-se lá quantos dias ou semanas até que a olhasse e finalmente decidisse que era hora de ler, ou, pelo contrário, admitisse que fora um erro aquela compra e que portanto não iria levar adiante a leitura.

Isso durou algum tempo, após o qual a livraria mudou-se, e nessa mudança cortou-se o nosso fio, eu passaria a evitá-la porque desgosto de lojas em shoppings, para onde ela tinha se deslocado.

Nunca entendi a razão, se por dinheiro ou porque a cadeia estava em crise e prestes a fechar por completo, mas essa alteração de local foi crucial para que deixasse de frequentá-la, para que me contentasse com o que livraria havia sido e não com o que era agora, com toda sua estridência visual e aparatosa, estantes alteando-se até o teto e um fundo espelhado dentro de uma torre que causava vertigem.

Tudo na nova loja era assim, entre o ostensivo e o opressivo, bem ao modo que é o shopping, e isso contrastava com o que era a antiga loja, mais recatada e sóbria, mesmo com os seus arabescos típicos de decoração que eram uma marca registrada. Fui uma ou outra vez, e nunca mais.

Agora me ressinto de que, na cidade toda, não haja uma livraria de rua sequer, uma que tenha essa qualidade que, bem ou mal, aquela livraria tinha, que é a de servir de labirinto onde a gente se perde com gosto, com graça, sem preocupações, por horas a fio.

Experimentei outra loja, esta de uma grande rede, mas também desisti depois de percorrer o formato axadrezado da arquitetura, as estantes como se transpostas de alguma feira de livro escolar, com os mais vendáveis sempre ocupando mais e mais espaço, quase nenhum critério orientando a organização visual.

Nenhum charme, nenhum refino, nenhum zelo pelo que a leitura tem de apaixonante ou fantasiosa. A loja é um atentado à imaginação, que se amofina logo na entrada.

Pensei até em abrir uma livraria de rua, escolhi nome e lugar. Considerei tudo, calculei ganhos e perdas, projetei uma rotina que me permitiria me dividir entre o trabalho de jornalista e essa empreitada tresloucada, mas desisti. Não tenho tino para negócios, ainda que esse negócio seja o de livros, objetos pelos quais sou apaixonado.

E digo paixão no todo, por seu formato, cheiro, cor, textura, volume, ângulos, tipos. Um livro se compõe de tantos elementos combinados que resultam num artefato único.

Queria um lugar tivesse em conta o tamanho de cada livro, sua espessura, os canais que se abrem com a leitura etc., mas que também fosse um refúgio de esquecidos, de gente em escapada, de sossego. Ainda me atrevo a entrar nele, mas não agora.

Por ora, lamento que F. seja tão árida, um deserto de livrarias, que vão rareando e rareando, até que não reste nenhuma.

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