Há pessoas de quem nos tornamos íntimos sem sermos de fato. É uma intimidade empírica, um lance meio cármico. Existe, e basta. Outras, entretanto, levam tempo e requerem esforço. Uma deliberada vontade de proximidade. E outras mais que, mesmo com toda a disposição, mantêm-se desafetadas. Longe, muradas, inacessíveis. A amizade é um comércio estranho de miudezas, gostos, desejos. No dia a dia, então, esse fluxo é mais frágil e intrincado do que parece.
Li em algum autor que a intimidade, que às vezes se confunde com amizade, é uma ilusão. Passamos tanto tempo ao lado de alguém, mas não sabemos de fato o que vai na cabeça de cada pessoa. O que cada uma enfrenta, o que esconde, o que carrega atrás da cortina de gente bem-sucedida e feliz que todos, em diferentes graus, se empenham em sustentar. Que demônios enfrenta no dia a dia. Ninguém repara nessas pequenezas. E não é apenas porque a gente se distrai com facilidade com o próprio umbigo, mais bonito e complexo. É porque essa mudança mínima é mais difícil de fixar.
Reparar nos outros exige atenção, empatia e gratuidade, três estados cada vez mais escassos hoje. Se estamos disponíveis, não estamos atentos. Daí o susto quando algo acontece. O susto é uma quebra de expectativas que se alimentam de fragmentos mal-digeridos do que supomos constituir outra pessoa. Julgamos conhecê-la porque dividimos horas de trabalho ou um lado da cama. Ou porque já ouvimos tanto que terminamos por encapsulá-la. O outro é isto. Quase nunca é. O outro sempre escapa, e isso é muito bonito. Olhar o rosto do pai e da mãe e surpreender-se.
Não precisaria dizer, mas eu não era amigo de Robin Williams. Sequer o conhecia. O ator foi encontrado morto na segunda-feira, em casa. Ao que tudo indica, Williams se enforcou com um cinto. Na terça à noite, ao chegar do trabalho, conversei brevemente com minha mulher sobre a morte. Tentei escolher bem as palavras. Ela está grávida e eu não queria assustá-la. Acabei repetindo, como para me certificar de que o real era real. Cinto. Quarto. Enforcado. Morto o palhaço e o riso. A felicidade, tão vizinha desse abismo.
Ficamos ali, de frente pro outro, tateando, às cegas, o sentido das coisas. A força que as palavras têm, juntas, redundando em frases que tiram o fôlego, só realça a insuficiência da língua para abarcar a experiência humana. E, no entanto, é tudo que temos. Também a vida, nós a conhecemos apenas de resvalar. É uma estranha que se afasta um bocado mais todos os dias. Temos quase nenhuma intimidade com ela. Mas estamos aí, aos sustos, para vivê-la. Isso também é muito bonito.
Durante uma entrevista, o escritor português Gonçalo Manuel Tavares me disse que precisava de escrever sempre. Escrevia para descobrir o que não sabia de si. É um truísmo frequente entre escritores a afirmação de que investigam apenas o que não sabem. O que tinha jeito de novidade era algo que, mesmo agora, não consigo dizer bem, apenas que me senti muito sozinho e perdido. A gente sabe muito menos do que imagina. E morre sozinho, sempre. Morremos estranhos a tudo, e nada do que dissemos será capaz de explicar o que fomos em vida.
Há um ano, em agosto, uma mulher de 96 anos morreu. Era minha avó. Hoje, sinto que não a conheci por total. Preencho as lacunas dessa memória com o amor que tenho e as histórias que me contaram. Queria-a aqui, risonha e presepeira, para lhe perguntar se tinha sido feliz. Queria que pegasse minha filha no colo.
Dentro de dez dias, serei pai pela primeira vez. À medida que a hora vai chegando, cheia de mansidão, tenho a impressão de que jamais saberei dizer o que é ter um filho. Como a morte, a vida também é uma estranheza. Não há palavra que a ilumine. De noite, olho a barriga da minha esposa. Um volume dentro dela se movimenta pra lá e pra cá. É minha filha, penso. Cecília é uma estranha tão íntima. Eu a amo. Ela ainda não me conhece, mas eu a amo. Não preciso dizer com exatidão. Isso é bonito e basta.