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O erro dos gregos



Acima, família tipicamente grega festeja chegada triunfal do iogurte homônimo às prateleiras dos supermercados no mundo todo, gesto interpretado como evidente e indubitável pujança e vitalidade gregas


O erro dos gregos foi ter permanecido tanto tempo sustentando uma imagem que não correspondia à realidade, ou seja, estavam posando de paradigma, esteio moral, âncora existencial e outras metáforas que, traduzidas, tomam esse povo como uma espécie de ápice especial da civilização e, sem medo de exagerar, culminância jamais experimentada por todos que lhes sucederam em escala cronológica.

O erro dos gregos foi ter nos feito acreditar que, sim, tinham resposta pra tudo e que não, não iriam nos dar essas respostas de mãos beijadas, para tanto precisaríamos trilhar nossos próprios caminhos etc., dando com a cara na porta nove a cada dez vezes. O erro dos gregos foi não exatamente mentir, mas rir da nossa cara enquanto mentíamos para nós mesmos, crentes nessa verdade inaugural de que apenas os povos antigos eram dotados.

O erro dos gregos nem foi tanto a breguice do colorido que recobre as esculturas que só dois dias ou uma semana atrás descobrimos por meio dos avanços da nossa ciência. A falta de gosto – de bom gosto – é, quando muito, um problema facilmente superável se olharmos para as roupas que vestimos, os programas que vemos na televisão, a nossa concepção de moda, de cinema, de literatura etc.

O problema todo dos gregos também passa longe da súbita fama atrelada ao avanço quase militar dos iogurtes homônimos nas prateleiras dos supermercados, desbancando produtos antes considerados imbatíveis, como o Vigor chocolate e o Chambinho de frutas vermelhas.

O erro dos gregos, se me permitem especular, distancia-se igualmente do fato de a Grécia ter ingenuamente ingressado na zona do euro ainda em 2001, quando a crise do dinheiro parecia um delírio resultante da mente demencial de um autor de ficção científica ruim.

O erro dos gregos foi não haver devolvido Helena a Menelau a tempo de evitar aquela guerra estúpida motivada por uma paixonite de Páris, o galho frágil de Príamo? Não se levarmos em conta que outros erros ainda mais graves foram cometidos depois disso. Alguns dos quais inconfessáveis, razão pela qual, embora tentado a fazê-lo do fundo do meu coração, não me sinto pessoalmente autorizado a revelar ao cabo de tanta conversa qual foi o vacilo capital dos gregos

Dou uma pista: tem a ver com cicuta, Homero e a seleção de futebol.

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