Acima, um integrante da Vanguarda em Prol da Pureza do Ar e da Sociabilidade resguarda, além de si mesmo, uma donzela aflita residente à avenida I do Conjunto José Walter (SER V)
A cidade está uma zona. As leis que governam a urbanidade jamais foram tão afrontadas quanto nestes tempos de carnavalização da política. O capital morde o próprio rabo, garantiu-me um militante do conceito de pós-engajamento.
Ninguém se entende, devolvi. Nas obras de mobilidade ou nas galerias de arte, nos plátanos dos terminais rodoviários ou nas emergências hospitalares, há sempre um cheiro viscoso de merda recém-produzida.
A integração temporal é uma ideia falida. A salsicha do cachorro quente tem aspecto ruim. As canetas dos garotos Manassés não resistem a um mês de escrita sistemática. É impossível enxergar as legendas do blu-ray. As escadas rolantes têm cheiro de barata. As paradas de ônibus seguem à mercê das intempéries climáticas, e é infinitamente mais fácil encontrar abrigo contra o sol numa planície venusiana do que na metrópole onde vivemos.
Não para por aí. Apenas na semana passada descobri que a fórmula de sucesso de uma famosa marca de suco de goiaba foi inexplicavelmente alterada. Para pior. Nenhum consumidor do produto recebeu um único comunicado da empresa, que funciona na região metropolitana, alimentada por gordos incentivos fiscais.
Cadê o respeito? Cadê os direitos humanos?
Parêntese para lembrar um assunto tangente. Outro dia fui a um supermercado cujo nome prefiro manter em absoluto segredo. Por engano, peguei o carrinho de compras de uma senhora. Após haver julgado que se tratava de roubo, um ato condenado moral e criminalmente, a senhora dedicou-se com energia surpreendente a despejar contra mim toda a sorte de palavras de baixíssimo calão.
Foi um espetáculo, acreditem, e se menciono a historieta aqui é somente com o intuito de demonstrar cabalmente que a árvore sagrada responsável pela frutificação dos nossos valores está prestes a desabar no meio da floresta.
A partir desses casos, o corolário não poderia ser outro. Torna-se, não fácil, mas forçoso concluir: a República, com R maiúsculo, não existe. A ética foi inexoravelmente obliterada pela ideia niveladora do sucesso imediato. O cristal quebrou. Aberto o pastel, não havia azeitona com ou sem caroço.
Nunca houve.
A alteridade é um ornamento teórico que sobrevive apenas até o 4º semestre dos cursos de ciências humanas – mais ou menos a mesma época em que os estudantes, num rasgo luminoso de presciência, entendem finalmente algo bastante simples: os seminários apresentados durante todo o mês equivalem a um saudável método encontrado que permite ao professor cabular as próprias aulas.
O pior disso tudo é que, contrariamente ao que haviam prognosticado as centenas de consultores de mídias sociais, nada melhorou após o trânsito de Vênus, esse planetinha sonso que chamou a atenção do mundo ao desfilar entre o sol e a Terra.
Um show de mesmice galáctica, isso sim.
Enquanto baixamos a guarda no ocidente e enterramos na última gaveta do armário da despensa os sonhos acalentados durante anos de meninice, uma nova ordem “glocal” se configura bem de debaixo do nosso nariz.
Um novo e nada auspicioso cenário cujo reflexo mais evidente é essa ferrenha disputa entre aliados. Infelizmente, o húmus basilar do nosso tempo é propício ao ódio dissimulado e ao falso bem-querer.
De irmão para irmãos, dou um conselho: resguardem vossas almas.
ASS.: Space Dog.
Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são
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