Na foto acima, um flagrante da violenta inadequação que acomete o cosmopolita caipira sempre que vai à padaria ou mesmo à farmácia
A academia, a igreja e os especialistas em mídias sociais da quinta maior cidade do Brasil são unânimes em afirmar: não é de pouca monta a tentativa de fixar o perfil dos numerosos tipos modernos, sobretudo quando se trata do ensaboado “cosmopolita caipira”. No que estão certíssimos. As dificuldades só não são maiores que a glória em obter um registro, ainda que fugidio, do tipo mais sedutor em mesas de bar e filas de cinema.
Vejam por quê: por índole e vocação, os arquétipos modernos são “líquidos”, e esse grau de liquidez ganha materialidade à medida que nos aproximamos do caipira predestinado ao cosmopolitismo. Não à toa, muitos pesquisadores guardam distanciamento desse organismo sabidamente reimoso. Medo de contágio?
Trata-se menos de rigor procedimental que de precaução.
Mas o que vem a ser um “cosmopolita” (cidadão do mundo) “caipira” (provinciano), do que se alimenta, como sobrevive sem inverno rigoroso? Frequenta lojas de departamento? Já foi visto comendo carne vermelha? Em suma, que cara tem o alencarino com acentuada inclinação internacional-telúrica?
Ao contrário do que afirmam os manuais, as metrópoles de médio porte são a morada preferencial do cosmocaipira. É nelas que o tipo permite-se, a contragosto, confundir com a média da população, do jovem tatuador ao publicitário dono de bar. Não é que seja um tipo bizarro, como o adepto da manga de camisa tatuada ou o usuário de carro com adesivagem em preto fosco. Está mais para infantiloide com traquejo social.
Uma das marcas do caipira deve-se a sua facilidade em misturar-se à paisagem, tal qual um camaleão, passando-se ora por adolescente alienado, ora por homem maduro que flerta com a melancólica falta de sentido da contemporaneidade e rejeita a superficialidade das relações mercantis.
A grande porção das horas, porém, é gasta com o que ele mais gosta: aperfeiçoar a máscara caipira.
Sendo assim, por qualquer ângulo que se encare o problema, vê-se um sujeito ordinário, e apenas quando o convidam a falar com franqueza é que confessa o que o tanto o incomoda.
Nesse momento, o caipira acusa, sem apelos, a relação inegavelmente beligerante que mantém com o lugar habitado – no caso, com Fortaleza. A bílis negra do descontentamento escorre. O corpo lacerado por navalhas de desgosto se mostra inteiro. É um espetáculo de dor e inadequação como nenhum outro.
O diagnóstico de tanto sofrimento é claro: para o “cosmocaipira”, implica grande mal-estar o footing cotidiano pelas ruas da capital cearense. Por quê? Digamos que preferiria fazê-lo nas metrópoles do eixo Sul-Sudeste ou mesmo fora do país, onde o caminhar flui gracioso e a natureza autentica a vida espontânea premiando os concidadãos com as quatro estações climáticas do ano, com ênfase no inverno (ver fotos no Facebook).
Barbaramente maltratado, incompreendido pela família, enxovalhado pelas camadas populares, habitando uma geografia que o deprime mais que a falta de estilo da nova classe média, o caipira tem ganas de matar quando lhe sugerem que as coisas em Fortaleza vêm mudando, que finalmente a capital entrou na rota dos grandes shows internacionais e, se tivermos sorte, Madonna virá, e talvez o Chico também.
Madonna de cu é rola, ele grita no Twitter. Chico é a cabeça do meu pau, chicoteia em seguida. Os RTs não se demoram.
O ritmo célere da vida e a falta de perspectiva a curtíssimo prazo aprofundam o já intransponível abismo entre o que deseja e o que é possível. As feridas da alma estão expostas. Custa-lhe percorrer a Padre Valdevino, fazer compras no Super Família, tomar sol na PF, almoçar na padaria.
Os jornais locais são um constante bombardeio de Dresden, a grade televisiva confunde-se com os pesadelos de criança, quando espectros fantasmagóricos dilaceravam seu rosto com pequenas incisões.
Ele respira, respira, então pergunta a si mesmo se algo poderá mudar no ano que vem. Ano que vem, não, mas talvez em 2014 a moldura dos gestos possa ser diferente.
EPÍLOGO
Convém perguntar: há qualquer coisa a ser censurada na atitude francamente desconcertada do “cosmopolita caipira”?
Apenas um ser humano rancoroso e daninho diria que sim. Antes do cupcake e do Instagram, as caravelas já partiam do velho mundo repletas de degradados gauche, homens para os quais a vida na sarjeta cristã das metrópoles colonizadoras não era suficientemente interessante.
A verdade é que estamos irmanados no sofrimento decorrente da desorientação tátil e espiritual.
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