Pular para o conteúdo principal

"Invisibilidade é comer da maçã novamente"

A quarta entrevista. Oskar pergunta, Henrique Araújo responde. Entre uma coisa e outra, Y. ilustra. Mesmo sem compromisso, mesmo sem paga. Em casa, de esferográfica na mão, sacudiu ideias antigas do aperreio que se dilatava no começo do sono. E rabiscou.

Que mais? Finda a entrevista, H. Araújo confessa a Oskar: queria ser três. Ou cinco. Ou vinte. Coisa de bastidores. Cigarro na mão, confessa. Queria ser uma Cacilda Becker. Um Harry Haller estranhamento tardio, lindamente doentio, barbaramente esquisito. Queria ser grupo de teatro. Queria ser torcida organizada. Queria ser muitos. Vendedores de eletroeletrônicos. Atendentes de telemarketing. Estudantes racionais.


Sendo um, divide-se como pode. Abaixo, os piores momentos.


Oskar - Que há de mentira nisso tudo?

Henrique Araújo - Parte da mensagem é mentira. Não a que fica no caminho, que se perde. Mas a que chega. Mentira, invenção, o que seja. É mentira a verdade dita e verdade a mentira registrada, falada ou escrita. Encenada. Ambas são intercambiáveis, ambas freqüentam o mesmo lugar hachurado.

Mas, se pensarmos direito, uma coisa é uma coisa e outra é outra. Se pensarmos. A gente costuma pensar mal.

Oskar - O que teria feito no lugar de Sophie Calle, a francesa que resolveu transformar em arte uma carta de rompimento enviada pelo namorado?

Araújo – A mesma coisa. Ganharia dinheiro com a ruptura. Melhor que ficar chorando pelos cantos a dor do amor que não veio. Ou que, se veio, se foi também, acho que um mês depois. Porque o amor vai, vai, vai, vai. E muda de endereço.

Como disse ela: o amor não acaba, apenas muda de endereço.

Oskar - Maizena ou Cremogema? Justifique.

Araújo – Antes dos 29, Maizena. Hoje, só Cremogema. Tudo é contexto. Antes, havia essa simbologia da caixa amarela, das papas que a minha vó fazia. Hoje, há um conjunto ainda difuso mas muito bem-vindo, muito gostoso, de coisas novas ligadas àquela embalagem. De modo que prefiro a segunda. E com muito chocolate. Bem preto.

Oskar - Você exibe marcas distintivas no próprio corpo? Se sim, descreva-as. Se não, invente-as.


Araújo – Pergunta indiscreta. Mas vamos lá. Tenho marcas como todo mundo tem. Cicatrizes, principalmente. No braço direito. Nos joelhos. Na mão direita. Conto uma história. Foi uma das primeiras marcas. Estava no ônibus. A mão descansada na janela aberta, concentrado na paisagem verde do sertão. Essa mulher vai e fecha a janela na minha mão. Sangra. Fico assustado com o sangue, mostro pra minha mãe, que esbraveja. Minha mãe sempre foi aquela calma que explode fácil. Acho que sou assim.

Além dessas, nada. Detesto tatuagem. Acho bobagem.

Oskar - Voar ou ser invisível? Desenvolva.

Araújo – Tenho pensado muito em ser invisível. Fiquei perdido nessa pergunta dias e dias. Voar é sonho, ser invisível é poder. Sonho e poder. Gosto do sonho, mas voar é tão brega. Acho mesmo que sonhar é brega, fora de moda.

E nunca foi tão bom estar fora de moda. Assim, prefiro, a essa altura, poder. Poder ser invisível é devassar, ouvir o que não deve ser ouvido, ver o que não deve ser visto. É como uma segunda queda do paraíso. Porque estamos todos bem, felizes, sem pecado. Sem pecado porque não sabemos o que o outro pensa, o que faz.

Invisibilidade é comer da maçã novamente, é persistir nesse erro bom.

Oskar - Quem nunca entrevistaria?

Araújo - Acho que você, Oskar. E a mim mesmo.

Oskar - Você está terminando jornalismo. Daqui para diante, o que será que será? A profissão vale a pena? Vai fazer outra coisa pra ganhar dinheiro? Quer viver a vida toda rabiscando pautas, enterrando e desenterrando personagens?


Araújo – Gosto do jornalismo. É a melhor profissão do mundo. Não há nada de errado com o jornalismo. O problema são os jornais. E, claro, os jornalistas.

Talvez encontre um ganha-pão. Quero seguir escrevendo. Mas mais do mesmo a vida inteira é castigo para dez gerações. Estou fora. Quero sossego. Três filhas lindas. Digo, duas filhas lindas e um menino, que pode até ser feio. Quero uma casa cheia de sol e também de sombra. Quero ler de manhã e fazer bolo com minha mulher no domingo. Quero andar no Centro à procura de coisas velhas pra decorar a casa. Não quero mais nada.

Oskar - De onde vem o amor? Para onde vai?

Araújo – O amor vem do mesmo lugar para onde está sempre indo. As pessoas mudam, mas a rota segue a mesma. Ele é digamos circular, se retroalimenta. Cada um nasce com uma quantidade determinada de amor. Vem com algo como se fossem tubos de oxigênio que os mergulhadores usam nas costas. Alguns têm mais, outros têm menos. Mas todos têm.

E serve também pra mesma finalidade. Amor é pra não afundar, não morrer afogado.

Oskar - A juventude é...

Araújo - Uma doença, claro.

Araújo - Quem é Oskar?

Oskar – É o verso. Tenho vida agitada, gozo muito, gosto muito, deito muito. Gosto de voar, não de sumir. Estudo psicologia. E literatura. Leio sem parar. Compro as revistas do mês. Adoro revista.

Agora mesmo estou metido em projetos. Coisas sem pé nem cabeça. Enfim, sou este. O dono do lugar, quem escreve nos fins de semana, autor de cartas, amante, alegre, triste, deprimente, sem graça, calado, mistério.

Se pudesse escolher, seria mistério sempre.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas