Pular para o conteúdo principal

O cONtexto da agONnia


O que faz um homem invisível? Num fim de sábado, nos feriados, na semana que antecede às férias, o que faz um homem cuja sombra cobre o corpo inteiro, dos pés à cabeça, um homem que tem os poros dilatados, os cílios vendados e os ouvidos embotados, um homem que sequer pode dizer abertamente todos os dias que vai até a esquina fumar porque lá é mais livre? O que pode esse homem? O que não pode? Mais importante: por que não pode?

Nada. Esse homem não pode nada. Ele é aturdido. Por algum motivo, ele é... A pessoa deprimida que D. F. Wallace desenhou em Breves entrevistas com homens hediondos. Ele é hediondo, um itinerário intrigante de pequenas agonias que se avolumam à medida que outras pessoas se aproximam ou se afastam, aproximam ou afastam, aproximam ou afastam sem perceber que deixaram para trás um rastro de odores sentidos do outro lado da galáxia.

Não é medo, ódio, pavor. Não é nada. Apenas uma constante inadequação de pés e braços. Um incômodo subjacente, latente, fremente. Vem e vai rapidamente, vai e vem frequentemente. Como uma variável matemática fora do lugar, fora da tela, do eixo, do esquadro. Um personagem fora da cena. Um canto fora do quadrado. Uma pétala a mais na flor. Sobra. E ele, o homem invisível, sente profundamente que é feito todo excesso.

Dito dum modo absolutamente pasteurizado, um modo industrial, um modo que não diz nada em essência. Porque em essência dificilmente alguma coisa teria validade suficiente para atravessar a quadra invernosa e chegar até quem sabe o próximo inverno. Nada. Dito assim, são pequenas agonias cotidianas, apenas. É desse modo nada novo nem velho que o homem invisível olha em torno e se assusta. Ele é só, sozinho e basta. Basta olhar. O homem é único? Não. Ele é velho? Não. É novo? Não.

O homem se identifica com o bloco monolítico que mata. O bloco que flutua em 2001. Ele não é nada senão um bloco de metal, plástico, papel. E mata. Se alguém lhe toca a frieza sólida, morre. Por alguma razão, morre. E o homem invisível tem o poder de matar sem tocar. Sem que o toquem necessariamente, ele arruína.

Voltando a Wallace, o suicida. O postulado é bastante simples, qualquer criança pode entendê-lo. Há uma dor inexprimível. Por sua condição, não se pode chegar até seu núcleo mais básico, mas somente tangenciá-lo. Apenas imaginá-lo. Intui-se: ele está lá. Sente-se o caroço, o volume subcutâneo formar-se gradualmente a cada novo dia, a cada nova saída, sente-se isso e não se pode fazer nada que realmente impeça o crescimento exponencial desse nódulo maligno através das células mais sadias e também das mais doentes. Ele vai e vai. Não tem restrições ou medos ou momentâneos e curiosos receios.

Seu mal, porém, consiste em algo absolutamente curioso: ele não se deixa entrever. Nem de perto, nem de longe, ninguém ou alguém tem a capacidade ou mesmo a habilidade de enxergar o pequeno monte cinza que cresce no mesmo ritmo em que o bebê da vizinha ganha novos dentes e o avô da minha namorada colhe os dias. Até que acontece. O nódulo fala.

Sossega, homem, diz. Aceita o contexto da agonia. É tudo que, por ora, você pode carregar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...