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A fofoca como gênero literário


No Ceará, a fofoca é mais que atividade comezinha, traquitana verbal ou penduricalho doméstico: é coisa séria. Entre nós, fofocar é gênero literário cultivado desde a chegada dos primeiros portugueses.

Consta que foi na base do disse-me-disse que o aldeamento passou a povoado e deste a vila, de modo que, desde a sua fundação, o Ceará dependeu da fofoca pra se firmar em meio às desavenças políticas e amorosas, impondo-se não pela força ou pelo convencimento, mas pela intriga.

À falta de símbolos sagrados ou ameaças potenciais de estrangeiros, coube à fofoca esse papel social. Por aqui, a catequese sempre se voltou à vida alheia, com a igreja fundada no mundanismo do assunto privado e nossos padres dedicados ao evangelho da alcova.

Novidadeiros, libertamos os escravos antes de todas as províncias do império, flertamos com o modernismo muito antes da Semana de 1922 e instituímos a fofoca como ponto cardeal da cultura com quase um século de antecedência em relação às fake news.

Mais expressiva que o cordel, mais popular que o forró, mais pegajosa que a rapadura, a fofoca é símbolo nosso. Como o artesanato em palhinha, o potinho de areia colorida ou o baião de dois com peixe frito, alimenta as engrenagens do ethos cearense, a ponto de denominar a própria Capital.

A operação semântica, conduzida pelas boas e más línguas, combina dois vocábulos, resultando no neologismo “Fofocaleza”, nome pelo qual a cidade atende a uma de suas vocações mais urgentes: dar a conhecer a vida de outrem por meio da disseminação não autorizada de fatos verídicos ou inventados.

Elemento coesivo, a fofoca cumpre assim função vital. Numa terra agreste onde cada metro quadrado já é um feudo e em toda esquina há um VAR do poderoso de plantão, a fofoca é também estratégia de sobrevivência. Na política ou na cultura, na economia ou na literatura, no trabalho ou no amor, exercitá-la é um ato de força da coletividade sobre o indivíduo.

Signo dúbio, a fofoca também é vanguardista. Como gênero literário, representa a escrita de si e dos outros, uma das vertentes mais em voga na literatura contemporânea, capaz de mimetizar acontecimentos sem de fato dizer se se trata de verdade ou mentira. Ora, ao fofoqueiro interessa sobretudo essa zona cinzenta na qual não se distinguem quem é o emissor da fofoca e quem é o personagem-alvo, restando apenas a zoada.

Nesse sentido, o Ceará, como já vem fazendo com a energia eólica, tem desperdiçado o grande potencial econômico da fofoca. Afinal, dos sete mitos fundadores da cearensidade (a fofoca, a hospitalidade, o humor, a macheza, a matutice, o recalque e a viçagem), ela é que mais se destaca.

É injustificável, por exemplo, a falta de uma “Flifoca” (Festa Literária da Fofoca), um “Focal” (micareta dedicada apenas ao gênero), uma “Foloca” (maloca da fofoca) ou um “Fofoca Vip” (evento no qual forrozeiros se juntam para emitir juízos morais sobre a vida privada de Wesley Safadão, dividindo-se entre facções pró-Mileide e pró-Thyane).

Também inacreditável que, entre dezenas de tapiocarias, esmalterias e gelaterias, não tenha surgido ainda um empreendedor de visão para apostar num negócio genuinamente cearense: a “fofocaria”.

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