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Mostrando postagens de outubro 19, 2025

IA oracular

  Quero pedir conselhos a uma IA, recomendações sobre o que fazer nas férias escolares ou os números da Mega Sena para jogar no final do ano, mas esqueço que a inteligência artificial não é genuinamente preditiva, ou seja, não se trata de um poder oracular capaz de antecipar o futuro. Na verdade, a IA é golpista, nesse sentido que atribuímos a alguém que se faz parecer com o que não é. Uma estelionatária, eu acrescentaria, certo de que não estou (ainda) melindrando os sentimentos da máquina, embora tenha lá minhas dúvidas sobre a real capacidade de elaboração dos sentidos e de sua autonomia subjetiva, sobretudo quando a IA soa quase como um milagre ao sugerir livros que pretendo comprar ou afiançar a qualidade de um filme de cuja história acabo gostando. Não sei se por profecia autorrelizável ou coisa assemelhada, o fato é que a IA costuma servir para tarefas do dia a dia, escolhas triviais das quais abro mão facilmente para economizar energia e tempo, ainda que os acabe consumindo...

Do Nobel

  Do Nobel conheço bem pouco, apenas que se chama Laslo qualquer coisa e sua obra ainda é ignorada no Brasil, ou o país é ignorado por ela, não sei. Apenas um livro do senhor L está disponível em português, de nome também impronunciável, de modo que L e seus volumes seguem como grandes mistérios para leitores em língua nativa, exceto pelo fato de que esse único romance traduzido pode ser encontrado facilmente em qualquer livraria, mais ainda depois do prêmio, concedido semana passada após espera cheia de expectativa pelos brasileiros que viam alguma chance remota de vitória de Milton Hatoum. A láurea foi uma espécie de banho de água fria depois de Ernaux, Han Kang e outras mulheres – a autora de Vozes de Tchernóbil, por exemplo, ou mesmo Olga Tokarczuk – ganhadoras antes de L., cujo talento parece inegável, eu diria até que é ocioso tentar demonstrá-lo, bastando citar que L é a inicial do primeiro nome de um autor cuja imagem é indevassável e tão contrária ao midiatismo que se exi...

Ao farol

  Foi apenas quando o farol velho reabriu que me dei conta de que havia estado tanto tempo fechado para qualquer uso, seja o turístico ou o de morada para quem não tem, um monumento ao esquecimento na cidade cujo núcleo de povoamento já antecipava sua vocação futura: o aterro. E então lá se erguia a edificação, estridente como um sol de outubro, recém-surgida no horizonte da paisagem urbana e cultural, o ato de reentrega cercado desses ritos um tanto teatrais ao demarcarem uma autoridade que apaga o rastro do que veio antes. Na sobreescrita do gestor de plantão, o gesto de mando sobre a história, a pedra angular a partir da qual pretendem que o enredo seja contado de agora em diante, nem antes nem depois, porque a página que importa é a que se abre desde o instante em que o poder troca de mãos. Uma torre recortada contra o céu azul da capital cearense, triangulando com Iracema e Mara Hope a mesma cena, um processo erosivo de fatores antrópicos cujo ponto de partida é o mesmo em F...

Estética de condomínio

  Não sei se por encantamento ou capacidade de predição do futuro, mas o algoritmo das redes começou a sugerir publicidade de condomínios de alto padrão a cada vez que “entro na internet” (exatamente como se dizia antigamente). De repente, estou às voltas com promessas sedutoras de “vista privilegiada, conforto e modernidade para quem valoriza viver bem”, o que talvez seja o meu caso, talvez não, mas me dou por satisfeito com a dúvida e sigo em frente, com “tudo ao meu alcance” e sem gasto extra de energia, disposto a saltar de cabeça na piscina da bem-aventurança imobiliária. Paro e penso nessa exuberante gramática da abastança. Nela nada é escasso ou comedido, tudo transborda, pejado de sentido e prenhe de possibilidades, o tempo em suspenso, coagulando positividade e secretando sonhos. Numa mesma frase, combinam-se a “expressão de sofisticação” e a “elegância”, vazando “bem-estar” pelos cômodos espaçosos em doses cavalares, desde que eu não me importe em passar o restante dos...

O celular é o novo bocejo

 Digo e repito: o celular é o novo bocejo. Duvida? Repare que basta o vizinho deslizar os dedos pela tela luminosa para que, automaticamente, essa coceira se instale pelo corpo, especialmente nos dígitos, só se extinguindo depois de uma consulta ao aparelho, mesmo que não haja nada para se ver ali, já que apenas um minuto ou dois atrás você tinha verificado e descartado a existência de qualquer notificação, de modo que, nesse ínterim, nada de novo havia se produzido, pelo contrário, tudo era mais do mesmo, dentro e fora do celular, exatamente porque não houvera tempo para que o que quer que fosse tivesse acontecido, e sem tempo as coisas de fato seguem iguais no mundo, uma vez que uma das condições para que uma alteração significativa na qualidade dos objetos que se deterioram e dos seres que se estragam é essa passagem entre as horas e os dias e os anos, ou seja, o acúmulo de tempo, ou o tempo perdido, mas talvez seja isso que a consulta sistemática ao aparelho a cada cinco minuto...

Fastio da IA

Aonde vou não se fala de outra coisa, “ia” pra cá, “ia” pra lá, e me permitam de agora em diante grafar em minúsculas e sem aspas para não ter de apertar os botões de caixa alta sempre que escrever ia, que, desse modo, acaba se confundindo com uma forma verbal. O passado de ir, ou seja, a inteligência se conjuga no pretérito imperfeito do indicativo, mas pode também auxiliar em construções com gerúndio, como em que “eu ia desistindo de escrever esta frase”. Mas o fastio existe, não é invenção, é uma sensação de afogamento cognitivo, uma inflação sígnica, um transbordamento ou superexposição, enfim, todas essas tentativas de apanhar o fenômeno enquanto ele se desenrola ainda. Agora mesmo na universidade, por exemplo, há como que uma caça às bruxas cujo alvo é a ia, por todo lado a confusão que se instalou em torno da questão: bani-la ou usá-la com sabedoria? Diante da incerteza, resolveram enxovalhar a ia, de maneira que os estudantes têm de baixar uma série de tutoriais para aprender c...