Pular para o conteúdo principal

Estética de condomínio

 

Não sei se por encantamento ou capacidade de predição do futuro, mas o algoritmo das redes começou a sugerir publicidade de condomínios de alto padrão a cada vez que “entro na internet” (exatamente como se dizia antigamente).

De repente, estou às voltas com promessas sedutoras de “vista privilegiada, conforto e modernidade para quem valoriza viver bem”, o que talvez seja o meu caso, talvez não, mas me dou por satisfeito com a dúvida e sigo em frente, com “tudo ao meu alcance” e sem gasto extra de energia, disposto a saltar de cabeça na piscina da bem-aventurança imobiliária.

Paro e penso nessa exuberante gramática da abastança. Nela nada é escasso ou comedido, tudo transborda, pejado de sentido e prenhe de possibilidades, o tempo em suspenso, coagulando positividade e secretando sonhos.

Numa mesma frase, combinam-se a “expressão de sofisticação” e a “elegância”, vazando “bem-estar” pelos cômodos espaçosos em doses cavalares, desde que eu não me importe em passar o restante dos meus dias em lugares “nobres e arborizados”, com perspectiva total, democrática (!) e também exclusivista.

Um contrassenso, é verdade, mas tão somente se você for excessivamente chato e se detiver mais do que cinco segundos sobre a etimologia das palavras.

Do contrário, bola pra diante. A vida é agora, todo dia é uma oportunidade para apreciar a beleza da simplicidade e saudar a ancestralidade rica da metrópole matuta.

Começo então a deslizar por esse platô de torres e residenciais charmosos, interrompido apenas quando uma dessas peças que vão se sucedendo no feed bafeja no meu ouvido as suas frases mais doces, arrematando com um convite irrecusável: “Imagine viver onde seus sonhos se encontram com o mar da Praia do Futuro”.

De pronto, me ponho a imaginar meus desejos de quitar o imóvel e pagar as prestações do financiamento convergindo para a beira da praia nessa tarde cálida, numa pororoca de delírio e realidade, um encontro do rio das minhas precariedades com o mar das minhas vidas alternativas.

E agora sou Alice no país das maravilhas entrando no meu loft ou abancada no rooftop no domingo, em volta aquele fiapo de solzinho delicado feito clara de ovo escorrendo atrás dos cajueiros que sobraram do loteamento desmatado, logo ao lado do parque recém-construído e cheio de bichinhos e aves felizes.

Mas não há tempo para devaneios nesse lugar habitado por uma estridência otimista e essa sensação de que o tempo se acelerou, mas os corpos estão mergulhados numa resistência inercial, recusando-se a avançar na mesma velocidade dos aplicativos e das IAs e das mutações.

É hora de se mostrar altaneiro, alguém cujas posses lhe permite “viver o extraordinário”, com tudo projetado sob medida, como num iluminismo de boutique, um catolicismo sem Cristo, uma espiritualidade “on demand”. O homem vitruviano ornando no canto da sala com o sofá e o couro do assento do carro, o berço do bebê e a camisa polo.

Seria essa uma “vida inigualável”, eu me pergunto de novo enquanto sonho acordado com a “ampla área verde” grafada em neon, sem dar por mim que essa vegetação foi transplantada artificiosamente, como aquela do canteiro do shopping, reproduzindo um ecossistema morto-vivo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...