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Fastio da IA


Aonde vou não se fala de outra coisa, “ia” pra cá, “ia” pra lá, e me permitam de agora em diante grafar em minúsculas e sem aspas para não ter de apertar os botões de caixa alta sempre que escrever ia, que, desse modo, acaba se confundindo com uma forma verbal.

O passado de ir, ou seja, a inteligência se conjuga no pretérito imperfeito do indicativo, mas pode também auxiliar em construções com gerúndio, como em que “eu ia desistindo de escrever esta frase”.

Mas o fastio existe, não é invenção, é uma sensação de afogamento cognitivo, uma inflação sígnica, um transbordamento ou superexposição, enfim, todas essas tentativas de apanhar o fenômeno enquanto ele se desenrola ainda.

Agora mesmo na universidade, por exemplo, há como que uma caça às bruxas cujo alvo é a ia, por todo lado a confusão que se instalou em torno da questão: bani-la ou usá-la com sabedoria? Diante da incerteza, resolveram enxovalhar a ia, de maneira que os estudantes têm de baixar uma série de tutoriais para aprender como manejar programas aos quais tudo que escrevermos estará submetido.

Vamos terceirizar para a máquina a tarefa de dizer se o que fazemos foi ou não obra da máquina. Então se a máquina disser que uma tese ou dissertação detém 60 ou 70% de conteúdo plagiado, talvez seja o caso de orar para aquele santo da internet ou das redes, não lembro ao certo.

Veja lá se tem de fato algum sentido toda essa barafunda, uma histeria que chegou ao ambiente acadêmico em meio a tanta incompreensão e disse-me-disse que os alunos e alunas e alunes não sabem por onde começar, o que fazer, para onde ir, a quem recorrer.

Eu mesmo, admito, tenho receio de perguntar a uma ia se meu trabalho foi plagiado, quanto dele há de original e quanto de cópia involuntária, e logo descobrir que tudo que fiz durante esses quase seis anos, dois de mestrado e outros quatro de doutorado, pode se resumir a um punhado de caracteres derivados de uma inteligência coletiva cuja autoria apenas a ia é capaz de atestar.

E eu teria de confiar plenamente na ia, teria de aceitar o que diz, teria de colocar o rabo entre as pernas e refazer tudo ou deixar de lado esse esforço, teria de desconfiar de minhas próprias atitudes, revistando meus métodos de pesquisa e minhas fontes, e as fontes das minhas fontes, e assim sucessivamente. Porque o erro nunca é individual, mas coletivo, e se a ia diz que meu trabalho guarda semelhança com outros já publicados, é porque esses que me antecederam não apenas se apoiaram nos ombros de gigantes, mas também espiaram por sob sua vista para saber o que faziam e assim chegar mais rapidamente aos resultados.

E que consequências isso traria? Falo da premissa tacitamente aceita de que a ia, que opera a partir de tudo que fazemos e dissemos, ou seja, como um coletor do que já foi feito, seja então alçada à condição de instância de validação da originalidade de trabalhos para os quais ela não teria, ao menos em tese, ferramentas para avaliar? 

Isto é, como a ia pode ser preditiva ou mesmo eficaz para mensurar o grau de inventividade de uma obra se tudo que faz é processar informações que circulam e a partir delas estabelecer conexões, muitas delas de consistência duvidosa?

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