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O celular é o novo bocejo

 Digo e repito: o celular é o novo bocejo. Duvida? Repare que basta o vizinho deslizar os dedos pela tela luminosa para que, automaticamente, essa coceira se instale pelo corpo, especialmente nos dígitos, só se extinguindo depois de uma consulta ao aparelho, mesmo que não haja nada para se ver ali, já que apenas um minuto ou dois atrás você tinha verificado e descartado a existência de qualquer notificação, de modo que, nesse ínterim, nada de novo havia se produzido, pelo contrário, tudo era mais do mesmo, dentro e fora do celular, exatamente porque não houvera tempo para que o que quer que fosse tivesse acontecido, e sem tempo as coisas de fato seguem iguais no mundo, uma vez que uma das condições para que uma alteração significativa na qualidade dos objetos que se deterioram e dos seres que se estragam é essa passagem entre as horas e os dias e os anos, ou seja, o acúmulo de tempo, ou o tempo perdido, mas talvez seja isso que a consulta sistemática ao aparelho a cada cinco minutos ou menos pretenda evitar, me refiro à extinção do tempo, não sua detecção patológica e reiterada, mas sua suspensão pela checagem permanente, afinal o tempo de fato se relativizaria se a matéria da qual é feito não estivesse visível, se sua materialidade se esfalfasse diante do bocejo, se o mesmo minuto se mostrasse ali.

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