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VISHNU, meu deus






VISHNU – preguiça de colocar os pontos entre cada letra (sem afetação, é preguiça mesmo, embora tenha gasto mais tempo e energia explicando do que se tivesse colocado logo os pontos que separam cada letra do nome, que, corretamente grafado, fica assim: V.I.S.H.N.U).

Uma avaliação rápida da graphic novelDesenhos primorosos, argumento frágil, cheio de clichês do sci-fi. Personagens sem carisma, enredo pouco envolvente. Desfecho previsível.

Superconsciência virtual emerge sem explicação, liberta a sociedade dos grilhões do consumo, é ameaçada pelo governo central, responsável por dividir a administração do planeta em nove áreas.

VISHNU, a superconsciência cuja manjedoura é o laboratório Limbo 5, bastante parecido com o Cern, que brinca de colidir átomos enquanto flagra o rastilho do bóson de Higgs e de outras partículas subatômicas do mundo pop da física.

Com mensagem pacifista e revolucionária, VISHNU logo começa a incomodar a gerência dos Nove.

Há também: uma guerrilha liderada por um herói que é o entrecruzamento do subcomandante Marcos e de Julian Assange. Embora se refugie na Amazônia colombiana, hábitat de outra fileira contra-hegemônica conhecida nos nossos dias, as Farc, a força paramilitar atua globalmente (sob nome fantasia de “Frente Luddita Kilgore Trout”), recorrendo, via de regra, a expedientes radicais.

Há um cientista grego-brasileiro de nome Alexandre Karabalis que se tornará interlocutor preferencial de VISHNU, o supercomputador animado cuja forma preferencial de se comunicar são diálogos em caixa alta num telão.

As referências soam, como podem ver, pobres ou rasas simbolicamente, bastando uma voltinha na Wikipédia para descobrir que VISHNU é uma das três entidades hindus a cargo de quem está o dever de cuidar de tudo que existe. No organograma de divindades, Vishnu, Vixnu ou, ainda, Vixenu é responsável pelo setor de “equilíbrio no universo”.

Kilgore Trout é o alter ego de Kurt Vonnegut e personagem que, no romance Café da manhã dos campeões, escreve livros destinados ao público alienígena.  

Na Wikipédia também é possível descobrir que o “Lótus de Vixnu se chama Padma. É o símbolo da pureza e representa a Verdade por trás da ilusão”.

Logo, temos um cientista tupiniquim bon vivant que trabalha no Sudão; uma guerrilha cujo nome homenageia um personagem de um romancista cultuado; um futuro em que as máquinas, dotadas de inteligência artificial, são tão comuns quanto telefones celulares; um governo dividido em nove áreas de abrangência; e uma jornalista que fará de tudo para obter informações em primeira mão (fala sério, quem ainda precisa disso?).

Finalizando: incríveis, os desenhos impressionam do começo ao fim, ao contrário do roteiro/argumento, que muitas vezes se aproxima do pastiche, fracassando ao tentar narrar um tipo de apocalipse das máquinas. Fracassa por não conseguir escapar nem reinventar os clichês do gênero. Contenta-se em desfilar mais uma historinha sobre o dia em que as máquinas assumiram o controle de tudo.

Nenhum personagem tem força, e a tentativa de envolver o leitor na teia de relações globais com acontecimentos espalhados pelos quatro cantos do mundo é ineficaz. 

PS.: os últimos lançamentos nacionais do selo de quadrinhos da Cia. das Letras estão de fazer vergonha (ver Guadalupe e A máquina de Goldberg).

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