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Novamente o mesmo ovo

Vi na televisão. Um candidato a vereador em alguma cidade perdida do Brasil. Que dizia aos gritos:

“EU VOU MORRER TENTANDO! EU VOU MORRER TENTANDO!”

Não costumo escrever e publicar aqui duas vezes no mesmo dia. Nada cabalístico, entendam. É que o volume de compromisso – leia-se desleixo – impede. Mas isso pedia algo. Digamos, algo à altura.

A seguir, o conto de domingo. Boa leitura.


11 POR 29

Henrique Araújo

Desceu. Vestia-se campanha. Broches, adesivos, bonés, faixas, pulseiras e bandanas. Atrás uma cordilheira de cabos disfarçados de amigos “Vamos ao society”. Na verdade resguardavam. Projetavam: equipados com portentosas caixas de som, projetavam obviamente um grito de guerra — “ONZE: AO INFINITO E ALÉM!” — bastante sonoro. Bastante quer dizer suficientemente sonoro. Suficientemente, que o brado podia ser ouvido sem perda de qualidade alguma nas bordas de qualquer buraco negro da galáxia XP-166/19997. Qualquer um deles.

MESMO O MAIS NEGRO?! Mesmo o mais negro...

Dentro dos veículos: os amigos mais próximos, os nem tão próximos e os verdadeiramente distantes. Dentro ainda: familiares, primos, vizinhos, esposa e ex-esposa. E também colegas de trabalho — todos ali espremidos e juntos por um só objetivo: torná-lo prefeito.

“Porque você tem vocação”, animavam-se. Mais a si que a 11.

Um dos parentes assustou-se ao ver a maleta multifuncional, uma maravilhosa Halliburton contendo: santinhos, confere. Moedas que tilintam graudamente no bolso, confere. Chaves: a) do apartamento; b) do carro; c) da lavanderia; d) da porta de trás; e) da porta da frente e do meio, confere. Mas faltava algo, uma chave-mestra para ser preciso. Havia todas as chaves menos —

— Menos a que abria o leve incômodo que passara a sentir tão logo pisou a calçada esburacada da escola de ensino médio e fundamental onde votaria, onde sempre votou e talvez continue a votar, dependendo da sorte ou falta dela.

Dependendo igualmente da breve conjunção de elementos estranhamente considerados alheios por quase todos que o cercavam à época. Ele explicava, professoral: logo na esquina. Alguém parado. Horas: 11h27. Televisão: cobertura ao vivo do pleito. Marta em São Paulo etc. Na banca próxima: DVDs. Cada um custa cinco reais. Um pássaro pousa no ombro do pipoqueiro, uma mãe escorrega saindo do banheiro, uma saia levanta-se à brisa.

A isso chama-se conjunção de elementos aparentemente desconexos que podem na hora e lugar e CONTEXTO certos garantir a vitória do candidato.

Mas havia o cisco. Onze não era bem um número da sorte. Ele tinha propostas, tinha força, coragem, vontade de fazer embora muitas vezes preferisse ficar em casa deitado ouvindo os gritos esgoelados do narrador de F-1 dizer “AGORA VAI!” Quase sempre não ia.

Sentia isso: não ir. A foto confirmava. Sorriso postiço: oitenta reais. Sobrancelha: oito reais. Corte de cabelo: dez reais. Unhas feitas (não apareciam mas valiam a pena): sete reais. Camisa nova: trinta e cinco reais. Conjunção favorável de elementos aparentemente — só aparentemente — estranhos um ao outro: cento e cinqüenta reais para cada célula atuante.

Nó subindo e descendo no estômago: não tem preço. Mesmo confiante, achou por bem optar por outro. Ao acaso: 29.

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