Pular para o conteúdo principal

Transição

 

Nos jornais, a palavra se destaca: transição. Como se, por passe de mágica, se passasse de um estágio a outro, entre os quais um interregno, a tal transição, servisse de ponto de virada, a novidade desde o início assegurada como se por estatuto. Depois de lá, já não se é mais o que se era.

Eis o milagre da transição, fazer crer que o novo se extrai do velho por obra do mero escoamento do tempo. Tudo bem, as pessoas estão lá, entretendo-se com os afazeres e se havendo com as dificuldades do mundo. Mas, antes mesmo que chegassem, ainda com o terreno vazio, já se chamava de transição a esse intervalo desabitado sobre o qual havia potência e expectativa, e mais nada.

Supõe-se que seja assim sempre porque sempre foi assim. E, do mesmo modo como se espera que entre um ano e outro algo se processe, e se instaure uma transformação na qualidade da vida e das pessoas, de uma transição também se espera o mesmo.

Ou seja, que seja por si o ingresso para esse outro mundo, um passe-livre para além deste agora que é incômodo.

Transição é a mudança progressiva, uma lenta alteração posta em marcha por forças cuja natureza a gente não conhece bem, mas nas quais resolvemos, por necessidade, confiar.

Veja-se o momento, a transição à luz do dia, politizada e empregada a propósito de tudo. Os nomes que a integram, os ritos que cercam a formação de colegiados de notáveis convocados a contribuir com esse novo estado de coisas.

Recebe-se a missão ciente de que o trabalho é imenso e de seu sucesso não existe qualquer garantia.

Há esperança, não resta dúvida, e mais uma vez o sentido da transição parece estar contido na própria palavra, na sugestão de movimento.

Afinal, transitar já é melhor do que habitar esse presente-passado do Brasil que ameaçava enterrar a todos num poço sem fundo. É disso que a transição nos salva, de que nos afasta, ainda que o caminho seja desconhecido.

Não se sabe aonde se vai quando se entra numa transição, os pontos de saída e de chegada como se escolhidos ao acaso, arbitrários como qualquer nome que se dê a qualquer coisa, gente ou objeto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...