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Anitta e as guerras culturais


Acho curioso que uma região específica do corpo de Anitta tenha ensejado mais um episódio das guerras culturais, que se dão num ambiente ultrapolarizado no qual mesmo o CNPJ de empresas é convocado a se posicionar no debate público, assumindo um lado.

Fomos do ânus da cantora à Lei Rouanet sem escalas, numa vertigem nacional, chegando agora a possíveis descalabros com o dinheiro público na contratação de shows milionários de artistas sertanejos para apresentações únicas em cidades de pouco menos de 20 mil habitantes.

O que começou como um ato de exibição do recalcado, por parte do cantor Zé Neto, vem resultando no desmascaramento de um tipo de negócio muito rentável para quem se ufanava de não depender de recursos do estado, fazendo da crítica a outros artistas um demarcador no espectro ideológico.

É também sintomático que os termos dessa disputa sejam esses sobre os quais vêm girando as conversas desde o início de maio, quando o “agroboy”, cujo nome era desconhecido para boa parte do país, nomeou deselegantemente aquilo que o incomodava, o “toba” de Anitta.

Citando sem citá-la, tangenciando o problema que o persegue, a ponto de fazê-lo dedicar parte da interação com seu público a um ataque anatômico-político-eleitoral, ele sintetizou toda uma agenda de costumes que vem se expressando nos últimos três anos e meio e que, vira e mexe, converge para esse único ponto.

Para ele, o ânus de uma cantora e a Lei Rouanet estão justapostos, correlacionados num mesmo universo, interdependentes e equiparados, sendo efeito e causa, razão e produto, tudo amalgamado na nebulosa de ideias rastaqueras que assombram esse campo político.

O cu, nesse sentido, desempenha o papel do “fantasma” – da ideologia de gênero, da linguagem neutra etc. –, ou seja, de um outro ao qual ele recorrentemente se fantasia combatendo: a esquerda, a mulher e a cultura, tudo misturado numa coisa só.

Essa coisa assume uma forma perfeita na funkeira carioca – despudorada, articulada e atuante, senhora de sua carreira artística e, por que não dizer, do próprio “cu”, literal e metaforicamente.

Isso é particularmente importante porque, seja como o símbolo de uma alargada possibilidade de exploração do próprio corpo, como procede Anitta ao tatuar-se, seja como lugar evitado em torno do qual Zé Neto apresenta seus queixumes de macho ruralista ameaçado, o “toba”, pra usar a linguagem homofóbica que campeia nesse setor, ocupa um lugar de destaque na mentalidade reacionária na qual se encontram esses exemplares.

Penso na frequência, por exemplo, com que o próprio presidente da República se refere ao tema em piadas com duplo sentido e cuja leitura se destina quase sempre aos apoiadores mais cativos, aqueles mantidos no cercadinho, orgulhosos de partilharem com ele o senso de humor especialíssimo.

Há nisso uma dupla obsessão: do corpo como assunto ao qual o conservadorismo sempre se volta, magnetizado e mesmerizado, mas incapaz de referi-lo com precisão (reparem na dificuldade de defini-lo, apelando a comparações, cercando-o sem dizê-lo). E dele como tema relevante da vida política.

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