Pular para o conteúdo principal

A palavra do ano

Fiquei pensando na palavra do ano de 2020, naquela que representa melhor que qualquer outra esta temporada que vai se encaminhando para o fim. Um ato de fé supor que as palavras governem o mundo, mas o contrário disso é imaginar que toda matéria de linguagem, inclusive sonhos e corpo, estão esvaziados de sentido. 

Primeiro, as mais óbvias: confinamento, distanciamento, Zoom, “live”, Covid e por aí vai, todas mais ou menos situadas dentro de um modo de vida que foi se impondo ao longo dos últimos meses e em torno do qual realinhamos noções de saúde e de convívio com esse outro de quem tivemos de nos afastar por obrigação.

Cada uma carrega sentidos diversos, fixam tempos e remetem a um estágio diferente deste ano: janeiro, quando nada fazia crer que viveríamos tudo isso; fevereiro e março, o início da grande onda de recolhimento.

De abril a julho, uma agonia a cada contabilidade de morte. E assim por diante, até chegarmos aqui, ao momento no qual tudo é passado sem ter sido de fato.

Não queria, porém, que o ano se encerrasse nessa asfixia, nessa falta de ar, nesse déficit, como se começássemos 2021 já devedores, negativados e com uma pendência a liquidar. Embora marcado pela doença, queria que o ano fosse saúde num sentido menos vulgar, que projetasse o melhor e apontasse para um aprendizado e que o aprendizado, bem ou mal, resultasse numa mudança.

Entendam: não é otimismo, tampouco “polianismo”. Por natureza, tendo a acreditar preventivamente no pior, mas quero crer que aprendemos qualquer coisa de importante com o que vivemos neste ano. E que isso não é pouco, mesmo que pareça.

E foi assim que cheguei numa palavra que, para mim, se não define com mais precisão toda essa barafunda sem nome, ao menos carrega um sentido potente e limitado ao mesmo tempo: cura.

Esse foi e ainda é um ano em que o desejo de curar-se talvez nunca tenha estado tão presente em suas múltiplas acepções. Da doença, da enfermidade que se abate sobre o organismo, sobre o corpo social. Das faltas pessoais, dos desamores, dos desacertos.

Mas também do mal psíquico e coletivo, daquela corrosão social e política, de um amofinamento que parecia não ter fim.

A cura, para mim, não é o esgotamento da doença ou a sua total desaparição. É a compreensão de que padecemos de algo nocivo diante do qual é preciso estar atento e disposto ao enfrentamento. Curar-se é entender-se inteiro implicado no mundo.

É possível que essa seja uma visão insuficiente de cura, mas ainda assim uma possibilidade. Todo farelo de felicidade e esperança, essas palavras tão gastas que soam como pornografia, é ainda luxo para quem vive hoje, sobretudo se no Brasil.

Vejam que terminamos engolfados por essa matéria espessa que, em dado momento, ameaçou ampliar-se e se replicar, chegando a norte e sul, feito aquela barragem cuja parede rompeu-se, liberando o rejeito que soterrou a vida pela frente. Uma metáfora do que enfrentaríamos em breve.

Mas acho que, no futuro, quando olharmos para 2020, teremos a impressão de que, naquele momento em que o ar faltou, na hora mais escura, soubemos encontrar resposta.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...