Pular para o conteúdo principal

Contra a leveza


E o livro que encontra na estante ao acaso antes de dormir é este que tem poemas como facas que cortam o ar, poemas como massas e gestos suspensos, poemas como se me pedissem para contar o primeiro pensamento da infância.

Poemas todos criados por uma força que se agrupa no mais baixo do ventre e no mais alto da cabeça e no mais fundo dos olhos.

Poemas contra a leveza.

Letras e sinais gráficos e depois as conjunções adverbiais são as primeiras a afundar quando atiramos tudo ao mar, arrependidos que estamos do que dissemos e escrevemos. 

E agora resta somente rasurar à espera de que esta outra história se firme no papel, e depois festejar o prumo e a sombra que projeta.

Esse livro que ela traz até aqui carregado nas mãos como bicho morto encontrado à beira da estrada a quem o criador pedisse que fosse até o mais longe para enterrar porque ele não tem mais nem forças nem recursos - esse livro é um engano.

Então partimos madrugada adentro feito estivéssemos num conto de Moreira Campos escapando de visagens e ameaças de homens em caminhões que cavam mentalmente as nossas tumbas antes de nos enfiarem lá dentro.

Como somos jovens e espertos, corremos à mata assim mesmo com medo mas tentando chegar ao outro lado, que nunca há de haver esse avesso.

E nisso sorrimos.

Ela então devolve o livro ao lugar de onde o retirara instantes atrás. Depois deita na cama enrodilhada, um gato antigo da casa. 

Pede que durma ali, e eu digo que agora já é tarde pra dormir.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...