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Um pequeno defeito


Gosto de junho como gosto de bolo e café e todas essas comidas do mês. Uma coisa boba ter com o tempo uma relação assim.

Há poucos dias fiz 38 anos. É uma boa idade. Muito velho para o engano, mas não totalmente para a ilusão. É sempre hora de dar com os burros n'água.

 A dois dos 40, me pergunto sobre o que mudou. Nos últimos dois meses, estive assim, vivendo de véspera e antevendo um tempo sem medida no qual eu talvez conseguisse andar sem estar aos tombos. Uma caminhada até a esquina, uma volta de bicicleta.  

Perto dos 40. Escrevo e me assusto. Ultrapassei a idade que meu pai tinha quando entendi que ele estava saindo de casa. Véspera. Foi um dia feliz.

E agora estou aqui, na vizinhança dessa coisa distante mas tão perto e sem qualquer certeza além daquelas duas ou três que a gente costuma carregar nos bolsos feito a poeira dos sentimentos que foram assentando nos móveis deixados pra trás. Uma cama, um tapete, um lustre, uma mesa desarrumada em torno da qual a vida se fazia e desfazia em rituais. 

A caminho de casa. A gente constrói, esfola as mãos, dedica uma gorda fração da vida a pequenezas. Gastamos o corpo e secamos a boca. Pensamos na felicidade como abrigo. E o tempo todo estamos sem amparo. Sem ver, caímos na esparrela de que o teto é forte o bastante para suportar ventos e tempestade.

Mas, de uma hora pra outra, tudo desaba. É inesperado. E depende desse acordo que fazemos com o tempo no qual depositamos muito mais do que podemos. Mais do a gente é capaz de carregar.

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