Pular para o conteúdo principal

Metade


Agora que chegamos à metade de não sei o quê, o ano que termina antes do fim parece viagem sem agenda. Programação desfeita em cima da hora.

É junho, e do meio pro desfecho é como um filme cujo final está aberto e pra ele nos voltamos sem saber ao certo se o mocinho morre. Até que descobrimos que não há mocinho nem bandido nem filme nem enredo nem nada, apenas uma máquina de pinball e dentro dela esferas de metal se chocando enquanto do lado de fora alguém empurra com força esses êmbolos ou seja lá que nome tenha a ferramenta que desfere o golpe final.

E por golpe final me refiro ao gesto de afastamento derradeiro. Uma força de origem indefinida cuja intensidade é também mais inventada que real. Feito o amor, felicidade. Feito esse conjunto de afetos que se juntam à força do acaso e depois dele se alimentam até que também o acaso resolve pôr tudo a perder.

E perdidos andamos novamente. E perdidos entramos mais uma vez no café ou na livraria e lemos o jornal e pagamos o almoço e perguntamos um ao outro o que será que está em cartaz neste exato momento. 

Mas perder-se não é a parte ruim. Nem o choque de bolas metálicas. Nem o fato de que caminhamos rapidamente para a metade do ano sem que a metade que passou esteja de todo compreendida.

Na verdade, a parte ruim é supor que haja esse momento de mansidão confinada a uma certeza de que temos controle sobre qualquer coisa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...