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Rever Belchior

Hoje escrevi Belchior.

Tinha abusado. Esquecido a falta, deixado pra lá. Mas pronunciei ainda uma vez Belchior. Disse que tinha saudade, que já se passara um ano, que ainda ouvia suas músicas.

Lembrei de coragem, ausência, susto. Descaminhos, essas dobras  da vida ao fim das quais damos com a cara no muro.

Misturei alhos com bugalhos. Disse Belchior, e quis despejar nele essa raiva. O tempo que estivera longe, nunca mais vê-lo.

Escrevi com ódio, um travo na boca e mãos crispadas. Domingo, a vida em suspenso, digitei numa folha em branco que teria feito em pedaços se tivesse mãos ainda. Mas já não tenho.

Não fui à praia, tampouco andei de bicicleta no trecho de orla que é céu e abismo. Nele caio e levanto.  

Disse mais uma vez Belchior e me arrependo porque já é tarde. Belchior não voltará. Imaginá-lo cantando como Caetano numa noite de sexta. Qual a valia?

Nenhuma. Sonho desfeito. Coisa sem préstimo. Engano.

Apenas lusitanismo amargo que não vem a calhar numa segunda, já por natureza avara quando se trata de um quinhão de alegria qualquer. Invocar o poeta é uma tolice. Vê-lo na praia, ainda um golpe.

Melhor que repouse e esteja bem onde estiver, náufrago feito barco ou trazido à terra em restos nos quais não vemos mais o artista, apenas a silhueta do que foi.

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