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Domingo

Domingo, e o céu escuro como se desabando aos poucos, ameaça que nunca se concretiza. Carregado, anuncia chuva que não chega, banho que não vem, sereno que alivie o cansaço, mas não o de agora.

Abro um arquivo. Dentro de um texto, um novo texto que não sei qual é. Escrevo porque preciso abismar - e digo abismo literalmente, cavar com as próprias mãos em solo rude, estragá-las nesse esforço e nisso criar outras mãos que saibam outro ofício mediante outra gramática. Estar diante do que seja agora a curva e na curva um encontro.   

Exercício de paciente espera. Leio de acaso, e de acaso pesco o trecho: “Pelos campos fora/ Caminhava sempre/ Como se buscasse/ Uma presença ausente”. É Sophia de Mello. Levo horas olhando seu rosto na capa do livro, uns olhos fundos, a boca entreaberta, os cabelos curtos à altura dos ombros, um vestido bonito de quem se preparasse sempre a ir a passeio ou festa no fim da tarde.

Então penso nisso. Na ideia de passeio, tarde e disposição ao encontro, num jeito de respirar que seja uma maneira de atirar-se mas também de recolher. Viver à toa na margem da queda. Levar o corpo ao baile, deter-se no miúdo e enamorar-se do que tem pouca serventia. Ali encontrar razão suficiente pra tudo que depois será o atropelo de horas úteis. Fundar num instante esse castelo com mil cômodos onde perder-se na vaga da madrugada é também jeito de se encontrar.   

Mas Sophia não está perdida. Ela tem a mão direita agarrando uma barra. Me pergunto se de escada, haste de bandeira, madeira de trave que sustente o teto de uma casa que não existe mais. Não é como se suportasse o peso de algo que não pode, tampouco como se se equilibrasse.

É mais como se agarrasse o concreto e nisso houvesse mais a intenção de estar firme na vida, embora os olhos digam outra coisa e a hipótese de sorriso aponte para outro caminho, um mistério que é ausência, como no trecho do poema.

Levo dias inteiros perdido nessa imagem de Sophia. Agora que a conheço, agora que está comigo e não tardamos um a outro, é como se nos conhecêssemos de há muito tempo. E então somente neste dia pudéssemos trocar as palavras necessárias. E o dia calhou de ser um domingo chuvoso, de jogo e ressaca. 

Que palavras lhe faltam?, pergunto à poeta, que ri, a modo de zombaria, mas acho que Sophia não graceja com malícia. Sabe o que quero dizer, o que planejo. 

Na boca um provimento de vida e enigma bastantes com que se possa carregar adiante o compromisso social. Um almoço, o trabalho, os estudos. Um descanso que é interrogação, dúvida que é felicidade. Uma brecha.

Andar à toa no meio da tarde de um domingo no calçadão a caminho de um lugar que é qualquer lugar. 

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