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Aparições

A persistência do número 11. Talvez haja algo de cabalístico, um número que se segue a outro em repetição ao longo do dia, uma placa de carro, as horas do relógio, uma temperatura de geladeira, o tempo de filme etc.

A sucessão e a circularidade. E essa tentativa frouxa de entender o número, um e um, o algarismo da chamada da escola, um endereço, a data em que algo acontece na vida.

Pela letra C, quase sempre caía no 11. Já fui 13 e até 6 e 7, mas o mais comum era que fosse 11. Uma professora brincou: lá vem o 11.

De tanto me acostumar, acabei levando pra vida e agora o número me acompanha sempre. Enxergo em todo canto.

Até o dia em que vi que Otto tem tatuado na mão: 1111. Uma dupla de onze, que seriam referência a algum portal aberto periodicamente em algum lugar do mundo. Coisa boba, esotérica, tanto quanto tentar adivinhar sentido no que não há.

A legibilidade do mundo é um gesto arbitrário. Não fosse a repetição, não fosse a persistência, não fossem as presenças e aparições que surpreendem ao longo do dia, sequer estaria aqui falando sobre dois números que se juntam em mensagem cifrada e talvez queiram dizer alguma coisa que não sei.

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