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Um encontro com L

Agora foi diferente, eu procurei L e propus que retomássemos de onde havíamos parado, ou seja, do ponto inexato em que as coisas perderam o eixo e no qual já não sabíamos mais o que éramos, se amigos ou confidentes ou pessoas interessadas remotamente um no outro mas que permaneciam ali a despeito de tudo.

Permanecer quando tudo o mais aponta pra longe, ficar quando tudo sugere ir embora, insistir porque nenhum outro movimento é desejável. É um desses mistérios que eu achava que só encontraria nos livros e nos filmes, mas o fato é que ele pode suceder a qualquer um de nós, que acordamos cedo e levantamos da cama com ressaca e vamos ao supermercado e esperamos na fila do consultório ou machucamos o mindinho na quina da parede.

Foi o que disse a L quando a conversa parecia encerrada e nós dois já não tínhamos mais nada a oferecer um ao outro. Foi só nesse momento que pude expressar claramente que algo me impedia de ir. Algo sem rosto, sem forma, um sentimento talvez, um apego a lembranças, uma carência, como ela usou, quem sabe para soar cruel, quem sabe para usar a palavra correta.

Porque L não é cruel, é mais engraçada de um modo selvagem e às vezes até pernóstica, mas cruel não. L é irônica, gosta de identificar pontos frágeis em mim e então espicaçar, mas faz isso como um gato que brinca com um animal que não pretende matar. Ataca com precisão cirúrgica, reduz o oponente a ridículo. De resto, é carinhosa como uma mãe que se diverte fazendo cócegas intermináveis no filho.

Eu a procurei por duas razões, expliquei a L mesmo correndo o risco de falar mais do que podia e devia: primeiro, estou em pedaços, sim, tenho de admitir que a ruína é uma metáfora útil neste momento, a paisagem abandonada e atravessada de memórias, edificações esquecidas sobre as quais construímos uma morada nova na esperança de que as fundações continuem firmes, embora no fundo não tenhamos certeza de nada. 

Segundo porque não posso abrir mão, digo isso e me pego automaticamente em dúvida sobre o que significa abrir mão de algo. De um sentimento, por exemplo. Não tenho resposta.

Terceiro: não vejo motivo para nada disso, e nada disso inclui todo tipo de resistência e racionalização e excesso de pensamento que turvam quando a intenção é clarear, ou seja, falo especificamente das coisas que pensamos quando desejo e inteligência ocupam campos opostos. Quando o desejo se opõe ao que a inteligência manda fazer e vice-versa.

Quarto, acrescentei, não é todo dia que podemos alimentar uma amizade atravessada por outros interesses, erotizada intelectualmente, mesmo que mantida a distância, mesmo que fadada a ser tão somente o que é pelo tempo que for e sem qualquer garantia de que será outra coisa. Como quase tudo que experimentamos quando decidimos deixar de lado as escolhas mais cômodas, quase todas satisfatórias exatamente porque nos dão a vantagem de não precisar escolher. 

L pensou, pensou, e disse não, não me interessa, ou até talvez me interesse, mas não por muito tempo. Porque no fim das contas isso não pode terminar bem, nunca termina. Eu disse a L que não precisaria terminar, bastaria que deixássemos tudo assim até o fim dos tempos.

E por fim dos tempos quero dizer o fim de tudo, esse momento também mágico no qual as coisas se esgotam, tão incrível quanto o começo. A gente superestima os inícios e os encontros, mas os desencontros e tudo que termina talvez definam muito mais o que somos do que todo o resto da trajetória.

Mas isso sou eu pensando com fome enquanto escrevo e tento dizer que tudo isto é por uma boa razão e não porque de fato é preciso encontrar uma saída para uma certa situação diante da qual eu me encontro terrivelmente sem opções. 

L ri como sempre, gargalha e pronuncia uma letra. Inesperadamente, ela me chama de H, e o som da consoante muda ecoa no tempo, reverbera e ricocheteia. 

Uma letra que emudece.  É o que me tornei. 

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