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Máquina de pinball

A música alta. Dança rodopiando, pensa em ir até o bar mas fica no dilema: se for agora pode perder a música, e tudo que não quer é perder a música, não essa, esperou a noite inteira que tocasse e ela tocou, então quer simplesmente ficar e curtir, dançar um pouco solto, um pouco preso, afinal não se dança nunca sozinho nem totalmente acompanhado.

A música para, ele resolve comprar mais cerveja, pergunta ao grupo se mais alguém quer e todos dizem sim, abre espaço entre homens que vão passando a mão no seu corpo como um pedágio e chega até o balcão onde pede quatro cervejas. Ele volta. Queria ficar, mas volta.

Outra música da noite começa e o salão agora se esgoela cantando uma versão em forró de um desses sucessos românticos internacionais, é uma espécie de hino da geração.  

Dá goladas na cerveja antes de distribuir, estão todos de olhos fechados cantando para o teto, os dedos das mãos em riste indicando que algo vai acontecer, algo pode acontecer, algo tem de acontecer.

A música termina sem que algo de fato aconteça.

Todos se entreolham e sorriem e novos pares se formam com a chegada de outra pessoa, um círculo se desenha, depois um corredor e agora estamos dançando colados, quatro corpos colados, que se desfazem para se reunirem a outros e depois a mais outros, como pequenas esferas soltas ao acaso do alto de um prédio numa máquina de pinball. 

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