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Dançarinos




A lista de desistências é ampla, quase infinita. Judô, capoeira, xadrez, violão, futsal, caratê, desenho, gaita, duas graduações, alemão, francês etc.

Mas lamento mesmo foi ter desistido da dança, que nunca tentei de fato. Desisti ainda quando nem havia sonhado em tentar. Tenho saudade desse tempo em que não queria, apenas. Rejeitava, e ficava feliz por isso. Achava bonito ali no canto da sala, admirando as meninas, sem nenhuma coragem de levantar da cadeira e chamar uma delas pra dançar. Cada passo, cada cabelo ondulando, cada movimento de braços e pernas.

Quando topava ensaiar era ainda pior. Como na vez em que passei duas semanas dançando lambada com uma garota e, no dia marcado para a apresentação, dei pra trás. Furei. Amarelei. Queria, mas não queria. Ela foi e dançou com o irmão menor. Caiu três vezes. Nunca mais falou comigo.

Até que um vídeo aparece, assisto e sinto que o melhor da vida é dançar. Quero voltar e retomar aquela dança. Já é tarde.

É um pasmo duas pessoas abraçadas ao som de uma música indo dum canto pra outro. Ou sozinhas, esquecidas do mundo.

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