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Passagem

Algo como um resumo, uma síntese, essa que contém as dificuldades que ninguém diz ou adivinha quando a gente passa e passando deixa apenas rastro e no rastro nada além da ideia falsa de que o que vai corresponde exatamente ao que se vê.

Essa correspondência é quase sempre falha. Nunca exata. Jamais confiável.

Sei de casos em que o nome que andava não se colava ao corpo, ou de corpo que não se adaptava ao nome. Era caso complexo, hoje reconhecidamente sem solução, o que talvez seja o melhor dos mundos.

Eu, quando passo, fico me perguntando se o que veem sou eu ou essa ideia esquisita que faço de mim quando me vejo passando na cabeça dos outros. 

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