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Sonho

Contou outro sonho.

Nele o mesmo sofá, ambos parados, olhando-se sem dizer um ai, o encosto velho, o lençol, a certeza de que teriam pouco tempo ou nenhum e que, nesse pouco tempo, teriam de se contentar com o que fosse possível.

Mas dentro do possível sempre a mesma surpresa, a maravilha de coisas não esperadas.

Nada de novo até ali.

A igreja de antes agora transformada numa mesa de bar no centro da qual havia apenas uma garrafa vazia e dois cigarros, um para cada.

Vazia pela metade, disse, soando falsamente enigmática.

Tem sede?

Respondeu que sim. Beberia tudo que restasse. Tudo que fosse possível. E depois os cigarros, mas não havia cigarros. Tinham sumido. Eram um sonho e nos sonhos objetos se movem e corpos desaparecem aqui para reaparecerem acolá.

Já não estavam na sala.

No mar. Água batendo no joelho. Tinha frio porque não vestia nada.

Era outro sonho em que nada nem ninguém aparece, mas assim mesmo  sentia vergonha da nudez. A sua e a dela.

O sofá boiava. Na água. Deitaram-se.

Dormiram ondulando e quebrando, presos por nada, furando as ondas, indo ao encontro do naufrágio. 

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