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Brinquedo

Escrevia entre as palavras. Sobre outras palavras escritas antes. Uma empilhada na outra. Empenhadas nessa pilhagem por tanto tempo, catapultadas para agora.

Palavras rotas, gastas, nem mesmo o velho hábito de pescar um vocábulo interessante no dicionário apenas para usá-lo a gosto numa crônica, gostava de impressionar assim, deitando uma ou outra que ninguém sabia ou se sabia, tinha esquecido.

 Era fã do esquecimento. Porque o esquecimento é um brinquedo. Nós voltamos ao parque onde antes tocava uma música e agora não toca mais nada. É um brinquedo estranho e trabalhoso esse de estar em todos os tempos.

Falava do novo, mas não gostava muito. Queria o básico. A camiseta, a calça, o sapato. O mínimo. O nada. Não a roupa nova, tampouco variedade. Mais do mesmo dito sempre de modo a parecer diferente. Tudo a mesma coisa. Até o fim dos tempos.

Nada que sobrasse ou fosse peso além do que havia prometido a si mesmo carregar durante o tempo que julgasse suportável.

Carregar.

Nada de culpa. Eram as mesmas palavras. As de sempre. Gastas agora por razões diferentes das de antes, mas mesmo assim palavras velhas, usadas, com cheiro e marca.

Lembra do cheiro que tinha logo depois? Da marca?

Lembra?

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