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Entre na máquina



Todos os tempos ao mesmo tempo, o que volta e o que se afasta, o que encolhe e o que expande, o tempo de ir e o de ficar, o tempo visível ao toque, o tempo que passa sem passar, o tempo material, metafísico, o tempo climático, o tempo de desesperar, o tempo coabitando, o tempo jamais visto, o tempo anticlimático, o tempo de encontro, do desencontro e do nunca encontrado, do que se foi mas, do que há, porém, o tempo como uma costura de materiais simples e nobres, feito o chão e o ar, o tempo compreensível, ininteligível.

Ficou a ver se o tempo acenava, mas entrou no ônibus e deu sinal quatro quadras dali, sozinho e feliz, depois entrou em casa e perguntou se tinha café pronto para agora. Lá fora, na calçada, fez-se tempo noturno, em seguida quase dia, quando os primeiros passos se ouvem da janela, é gente que acordou mais cedo ainda pra surpreender o tempo de nascimento das rotinas das pessoas.

O tempo astronômico que escapa durante a formação de um planeta. Mesmo flagrado, nunca é o parto.

Quando minha filha nasceu, tentei apreender o tempo exato, que ficou suspenso entre um segundo e outro: quando vi, estava ali, diante de mim, ainda que eu não tenha tirado os olhos da operação. Estava lá como se sempre houvesse estado.

Assim é a qualidade das coisas que resistem ao tempo, mas também das que se esboroam com o tempo. De comum entre elas, a capacidade de estarem e não estarem. 

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