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A obra de cada um

Um livro de instruções que não instrui. Um livro que contém setas apontando para todos os lados e a cada esquina faixas exclusivas para pedestres, ciclistas e motoristas, de modo que o fluxo nunca cesse, nem de um lado nem do outro, o que no fundo seria ruim para quem apenas observa o trânsito e jamais se encoraja a atravessar a avenida, seja em que sentido for.

Um guia de consumo que sugere todos os produtos, inclusive os estragados, vencidos, enlatados, carne para vegetarianos e ervas para quem não está nem aí, cebolinha e alho-poró contra o deslumbre, beterraba para o azedume, cheiro-verde e coentro para amenizar a angústia, beberagens para as decepções amorosas e chocolates para suicidas.

Uma obra necessária sobre objetos desnecessários, um livro que aponte aonde ninguém pretende ir de férias nos próximos anos e talvez nas próximas décadas, uma referência sequer de história passada ou futura, uma única praça importante com um busto entronado no centro arborizado e vazio, um único personagem cuja vida todos julgam saber sem de fato saberem de nada, nenhum museu de estátuas de guerreiros e intelectuais progressistas porque homens e mulheres que lutaram por liberdade encontram-se nessa cidade misturados anonimamente a outros homens e mulheres que nunca moveram um dedo.

Uma coleção de pequenas e grandes irrelevâncias. Para combinar com tudo e todos. 

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Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas