Pular para o conteúdo principal

But I try

Foi só depois de escutar Modern love pela 50ª vez que percebi que o que estava fazendo não era exatamente a coisa certa e que afinal a repetição, ao contrário do que todos dizem, não leva à perfeição, mas a uma lenta e garantida agonia, e que no fim do túnel o que nos espera é no máximo um bilheteiro de cinema dizendo com um sorrisinho engraçado que o filme já começou.

E vejam que não se trata do tipo de agonia que a gente sente quando as coisas fugiram ao controle e agora resta somente olhar e esperar, olhar o furacão e esperar que no último segundo os fortes ventos abrandem e as tormentas se acalmem. Não é assim.

O tipo de agonia que a gente sente ao escutar Modern love pela  50ª vez é equivalente a sonhar correndo atrás de um ônibus e nunca conseguir fazê-lo parar.

Ou sonhar nadando e se afogar.

Sonhar atirando e não matar.

Sonhar saltando e não pular.

Sonhar beijando e não beijar.

Sonhar gozando e não gozar.

E por aí vai.

Impossibilidades, coisas assim. O tipo de agonia que escutar a mesma canção uma dezena de vezes significa ou que repetir a mesma palavra até que ela se desmanche, esfarele, e, uma vez esparramada na palma da mão, uma vez transformada em massa de modelar, se converta no que desejarmos, se o que desejarmos for suficientemente claro a ponto de conseguirmos esculpi-lo numa palavra natimorta.  

Se você faz isso, se você repete, se você tenta e tenta e tenta tanto quanto Bowie ou qualquer outra pessoa, então você sabe do que estou falando.

Ou pelo menos acredita que sabe do que estou falando, assim como, ao falar, me convenço de que sei precisamente o que quero.

É uma forma de sonhar. Impossibilidade. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas