Pular para o conteúdo principal

Sobre a nudez



Depois do falso salmão, polêmica que ainda não tive tempo de entender direito, do veganismo infantil, resultado da exposição frenética de um vídeo no Youtube mostrando uma criança que se pergunta se é realmente necessário matar, vem aí o nu orgânico, forma de arte-vida-performance que se apresenta como resposta para as muitas angústias do homem e da mulher modernos, resposta essa que também não tive condições objetivamente materiais de compreender.

Reparem que o nu orgânico é a contraparte de um nu presumivelmente inorgânico, ou seja, nudez composta de matéria nem vegetal nem animal, onde se conclui que mineral, ou, finalmente, que se enquadra na categoria do inanimado, no que ficamos a ver navios, como pode haver nu orgânico se não há propriamente nu inorgânico? Seria o nu plasmático? O nu espectral, fantasmagórico, ou a expressão diz respeito somente à inexistência de substâncias naturais no emprego desse nu?

Ora, por mais silicone que uma mulher abrigue em si, ela ainda será majoritariamente feminina, ou seja, mulher, ou seja, orgânica, ou seja, superestrutura cuja base é vegetal ou animal.

Instala-se a seguinte cizânia, uma das tantas inauguradas com o advento do politicamente correto: o nu orgânico é artístico, natural, autêntico, e o inorgânico é artificial, falso, pouco expressivo. Esse jogo de opostos esconde mais do que julga nossa vã gastronomia filosófica, mais até do que aquilo que somos levados a crer quando enxergamos unicamente resistência política na adoção deliberada do orgânico em detrimento do inorgânico.

O que há por trás do nu orgânico? Uma crença na pureza do indivíduo semelhante à que a seita acredita combater? Afinal, o orgânico e o inorgânico são ou não os dois lados da mesma moeda?

Deixemos a questão para os antropólogos de 2097.  

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...