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Cenas de carnaval II

Está numa caverna quando a primeira de uma série de criaturas estranhas aparece, ela carrega uma arma, de longe não vê qual arma, se revólver ou faca, à medida que se aproxima, porém, descobre tratar-se de uma lança, a criatura, um hominídeo horripilante, mostra os dentes num esgar cruel, num golpe de machado, então, decepa-lhe a cabeça, fazendo jorrar sangue por todos os lados.

Acorda, vê que tinha dormido além das cinco horas programadas, prepara café, passa geleia numa bolacha salgada, liga o computador, checa mensagens, a primeira avaliação do dia, franze o cenho, abre cinco abas no navegador, duas de redes sociais e as outras três de jornais, começa a maratona que realiza todos os dias para se manter sempre informado, afinal é o seu trabalho, vive disso, depende de saber mais que as outras pessoas sobre muitos assuntos, mas nada tão aprofundado quanto fazem crer as postagens no Twitter, por exemplo, ou as conversas nas mesas de bar, quando aproveita para impressionar a plateia recorrendo a idéias pescadas das revistas de filosofia e sociologia diluídas. 

Se parar um pouco e forçar a lembrança, não recordará do último livro que leu do começo até o fim.

Uma das abas pisca, alguém quer contato, é a primeira de uma série de demandas que surgirão ao longo do dia, uma criatura aparece numa foto, sorri, mas o riso parece careta, não a reconhece imediatamente, ao menos aparenta estar desarmada, o que significa que não precisará cortar-lhe a cabeça, isso é o que importa. 

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Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

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