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Glória e derrocada de uma geração




Um argumento seria: jovens assumem provisoriamente o controle da fábrica da cidade. De pronto instalam-se no gabinete, no pátio, na casa de máquina, na administração, no vão de ferramentas, na sala de jogos e no lobby.

Desejam não apenas transformar a fábrica, mas a vida das pessoas.

Para tanto, elegem novos capatazes, sócios, gerentes, fiscais, operários e chefes de setores, além de estoquistas e controladores da qualidade dos novos artefatos que sairão das linhas de montagem, preservadas muito mais como ato de concessão a um passado que tinha lá as suas seduções do que como ferramenta produtiva.

De posse das instalações da fábrica, antes um monstrengo cinza que poluía as ideias da cidade, infestando ruas e avenidas e recobrindo tudo com uma camada grossa e oleosa de má-vontade, agora os jovens se sentem no dever de proporcionar uma experiência diversa, sensível, um contato mais verdadeiro com o real, uma ponte concreta entre o passado de provincianismo e o boom cultural que já se adivinha no futuro.

O problema é que não sabem exatamente como, e aqui tem início a caminhada ladeira abaixo.

Desistir não é uma alternativa, dizem uns aos outros, incentivando-se a cada hora, buscando melhorar e eliminando o que havia de errado no dia anterior. Aos trancos e barrancos, dão início a um ciclo virtuoso que se retroalimenta, uma engrenagem bem-sucedida de fé no trabalho e na potência das boas ideias.

Entusiasmado, o grupo ganha as ruas da cidade, distribui panfletos, promove micaretas e gincanas para angariar fundos e assim custear parte dos gastos da empreitada criativa, que, ao contrário do que previam, acaba gerando mais desvantagens que vantagens, o que logo é paradoxalmente interpretado no círculo mais próximo do mandatário como um bom augúrio.

Estavam enganados, claro.

Diferentemente do que muitos supunham, o produto que oferecem é ruim, e o negócio, inviável comercialmente, desanda. Em dois meses, torram todo o investimento que haviam feito. Em cinco se veem obrigados a vender parte das ações da fábrica, que, por imposição dos acionistas majoritários, muda de nome, passando de X a Y, sendo Y um conceito absolutamente contrário ao expresso por X, o que, no calor das mudanças e dos problemas que a gerência enfrentava com o pagamento de distribuidoras, não é percebido de imediato, mas apenas semanas depois, quando já era tarde.

Transformada, a fábrica hoje produz sete vezes mais. Resultado, dizem orgulhosos os novos donos, do investimento maciço em marketing e cortes na folha de pagamento. Da empresa criativa dos primeiros tempos, porém, resta pouco. Apenas um quadro engraçado pendurado no hall de entrada da nova sede, de pé direito tão alto que a vista não alcança.

Desempregados, os antigos trabalhadores da fábrica se dedicariam, anos depois, à criação de uma empresa especializada em cercas elétricas e outros aparatos de segurança doméstica. No último trimestre, a Grampo’s teve lucro de 3,84%, fato comemorado com muito entusiasmo por todos. 

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