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Falo à parede

Falava com as paredes havia meia hora.

Falar com paredes não representa problema.

Desde que não haja expectativa de resposta.

Não era o caso.

Por natureza, sempre aguarda resposta.

Uma equação logarítmica, por exemplo.

Admitir o que não deve ser admitido – sequer às paredes - era uma modalidade de escrita recente, arriscada, imodesta.

Trata-se disto e não daquilo.

Quantas pessoas terão a capacidade de simplesmente dizer? Dar as costas.

Comunga a abertura clássica: peão adiante, seguido de cavalo e bispos.

Fragmentos de areia, cimento, água, brita, tinta e poeira intergaláctica, paredes não têm o hábito de revidar – tampouco acusam golpe algum.

A força consiste em preservar-se do risco.

Enigmáticas, armam-se de silêncio – percorrê-las é o desafio.

Entendia a falta como forma soberana de diplomacia.

E, claro, fina expressão amorosa.

Por definição, nenhum amor começa ou termina com histeria.

Histeria e amor anulam-se.

Amar inscreve-se no reino do entrementes, do entretanto, do entrave.

O território da duplicidade é também o da expectativa.

Terra do interregno.

Funciona assim na maior parte do tempo, largos extratos de vida mergulhados na carência de som, abundância de nada.

O silêncio acontece quando o movimento enérgico engata.

Há meia hora fala às paredes.

Como resposta, devolvem-lhe a única chave imprestável do molho.

Que fazer com esta chave?

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