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Corpo vizinho

Tem esse sambinha, quase redundante, um samba triste, lento, que se confunde com música brega, e só acredito mesmo que é samba porque entendo quando dois batuques ritmados acompanham uma voz melosa. Entendo que não poderá ser outra coisa além de samba.

Dito isso, cabe reafirmar, é absolutamente incrível e enigmático o exato instante em que toda a aguda compreensão do tempo, da trajetória e do sentido se materializa diante do próprio nariz, e você se limita a observar, não assente nem discorda, apenas assiste e disso retira uma ou outra sabedoria, nada mais, porque a) se trata realmente de um momento super-rápido, mal temos tempo de piscar e já se foi, e b) a natureza dessa compreensão tem a pele tão fina e porosa que não sustenta bem uma resposta, ainda que houvesse resposta.

Não é tão difícil de explicar, considerem o susto que nos invade quando imaginamos ter vivido uma situação, os mesmos personagens, o mesmo gesto, a mesma fala, então o que estou falando? É semelhante, com a diferença de que, em vez de sentir haver passado por aquilo tudo em outro ponto da vida, somos vítimas da impressão de entender cada partícula de nosso corpo, do corpo do vizinho e também da música que está tocando.

Mas é tudo tão fugidio, tudo tão escapista, nem vale a pena gastar saliva com nada. De todo modo, fiquem atentos ao que se passa diante dos olhos, meus amigos, e sempre deem bom dia e boa tarde e boa noite, ainda que estiverem sozinhos no elevador.

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