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Bolonhesa

Um 11/9 não muda a vida. Muda e não muda.

As pessoas continuam indo ao supermercado e, na hora de pagar a conta, continuam ouvindo a pergunta: débito ou crédito? Se pedem cigarro, têm de esperar que o gerente ou coordenador ou subgerente vá até aquela espécie de armário onde os pacotes ficam guardados a cadeado. Enquanto isso, via de regra, a fila atrás de si enfeza-se, afinal é muita petulância atrasar os afazeres do restante do mundo saudável unicamente para manter irrigado o câncer que se alimenta dia a dia.

Muxoxos, caras retorcidas, sobrolhos ameaçadores. Arma-se a guerra silenciosa. Ódios destilam-se numa fila de supermercado. A maldade expressa-se em fungados de impaciência e pernas que descansam à despesa de energia de outras pernas.

Cumprida essa etapa desgastante, compras debitadas, vamos todos para casa com nossas lasanhas e refrigerantes de 600 mililitros e nossos cigarros e nossos sabonetes de aveia sem esfoliante. Temos ainda um fiapo de domingo para gastar, seja com a família, seja solitariamente.

Bom que seja assim. É bom que as tragédias não se abatam com tanta força sobre as rotinas.

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