Pular para o conteúdo principal

Pequenos acontecimentos

Estando na sala por cerca de duas ou três horas, o pensamento repletamente concentrado, tomado de coisas por si mesmo, dava voltas e voltas em torno de uma questão literária de menor cabimento. Estando na sala, não evitou surpreender-se quando cinco ou seis das sementes de uma planta cuja flor é azul turquesa se espalharam pela casa, provocando efeito semelhante ao do entrechoque de bolas de gude atiradas ao acaso por mãos de criança ou ao de bolas de sinuca após uma tacada desastrosa.

Escrevia desde a manhã. Uma xícara de café ao lado do computador, pilhas de livros e revistas e o jornal do dia aberto na página de opinião constituíam o quadro matinal severamente repetido dia após dia, sem reclames, sem pausas nem intromissões. Estava nesse pé, dignamente recolhido, sequer tinha deixado a casa para almoçar. Parte preguiça, parte obsessão.

Um punhado de esferas negras feito sementes de maracujá saltou da estante, derramou-se no chão, escondeu-se atrás das cadeiras e entre as vias expressas desenhadas no espaço exato de uma cerâmica para outra.

Espantou-se menos com que houvessem rompido a casca cor da pele do que com sua presença. Era espectador de um bago seco de brotos esquisitos que, por obra de qualquer força cuja origem desconhece, desprenderam-se do interior da guarnição ressequida, um casulo por função, há dias posto num dos cantos da estante de plástico e lá esquecido até aquele momento.

Ligou para ela e comunicou o fato, tendo cuidado em construir clímax. Ela apenas ria. Para arrematar, arrogando-se um tanto apenas de poesia, contou da emoção que se seguira ao susto provocado pela explosão de sementes. Cada uma, disse, rolara para um ponto diferente da casa vazia.

Finalmente garantiu tratar-se de evento qualquer no desenrolar das horas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...