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Diário de campo em 3ª pessoa


Não havia tanto tempo, pensando bem não havia nenhum tempo, era o que costumava alegar se lhe pediam qualquer trabalho uma semana antes de findo o prazo de entrega, mas todos sabiam que se tratava de desculpa, uma entre tantas que ainda faria desfilar diante das cobranças já nervosas, já exasperantes para ambas as partes envolvidas naquilo, era sobretudo solicitado, pedido, cobrado, embora sempre recusasse acreditar que estivessem certos, era mais a falta de tempo, era o prazo curto, era a natureza do trabalho, eram principalmente a natureza e a ordem internas do trabalho, fosse ele qual fosse, viesse de onde viesse.

Vejam aquele, observar durante horas o nascimento, o desenvolvimento, a reprodução e, finalmente, a morte rastejante de uma célula queratinosa disposta na ponta da antena de uma libélula e, sem descurar da habilidade narrativa e perspicácia científica, bem lembrado, produzir um completo relatório, atinando igualmente para as partes mais importantes do processo, a saber, nascimento, desenvolvimento e morte.

Tendo isso em mente, fora a campo caçar libélulas, visto que sem elas o trabalho seria mortalmente incompleto, e como houvesse aprisionado quantidade razoável de libélulas nos bolsos, no estômago e no chapéu, sem esquecer de jogá-las em largas porções no coração e nos ouvidos e também no ânus, não sabia com exatidão a partir de qual ponto da pesquisa seguiria em frente, que espécime escolher? Havia tantas delas que por acaso confundia-se se lhe exigissem atenção, por favor, olhasse na direção exata de quem de direito.

Quem era quem de direito? Nunca soube ao certo. De maneira que regressava a campo ao menos três vezes ao dia para capturar mais e mais desses pequenos animais, como costumava chamá-los, pequenos animais, sem jamais concluir a pesquisa encomendada e mesmo conseguir recordar o começo de tudo, o pedido que motivara a busca, disso sequer havendo o menor vestígio. Estava tudo inexplicavelmente destinado ao esquecimento. Ele remotamente preocupava-se.

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