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O clima de paquera e azaração

FATOS DA SEMANA

FATO 1 Era a mesma história, tinha essa certeza toda completinha que temos durante as madrugadas. Era a mesma história, repetiu, mas agora deslocada no tempo e no espaço por um roteirista que soubesse de antemão, “o público necessita ração similar à que costuma pôr goela abaixo diariamente”, cogitou sabendo-se meio frankfurtiano, que é um modo de dizer mais ou menos assim: uso um jargão político para demonizar cujas referências, não lidas, é verdade, sequer entendidas, posso enumerar. Como se dissesse: eu, o inimputável. Bom, e daí?

FATO 2 De maneira, deixe-me ver, acentuadamente cômica, levantou-se da cadeira e a convidou para dançar, e fez isso com um jeitinho de cabeça, aquele meneio que somente duas pessoas imersas de corpo&alma em processo de aguda erotização visual, esse estágio imediatamente posterior ao do entendimento febril e assertivo e que antecede o lado dialógico da coisa em si, a coisa em si conforme estudo breve mas profundo sendo ela mesma autônoma,

Entendem,

E aqui me desculpo por interpor a cada sentença um sem fim de apêndices, jamais chegando ao final do que pretendo dizer,

Num segundo.

FATO 3 E o que os demais fizeram? Bobos que são, agitaram-se sozinhos, ignorando friamente a cena, como era previsto no roteiro, mas também caprichando como bons profissionais que são nas cores e nas interpretações, ora realistas, ora dignas de grandes falastrões como Selton Mello. Ocorre dizer que era, porém, a primeira anti-heroína da história, e ela resolveu rechaçar o convite mantendo-se apenas sutilmente à disposição da paquera, sugerindo-lhe, terna, dirigir-se à mesa ao lado, onde uma morena bastante comunicativa como diziam na década de noventa punha um bocado de macaxeira frita na boca e bebericava ato contínuo um pouco de cerveja. Melhor não, pensou ele, e foi aquietar-se minutos depois.

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