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ELE DISSE "OCUPADA?", ELA DISSE "BRIGADA"


De repente, o rosto ainda crispado, as mãos suadas, os cabelos levemente despenteados porque quando está nervoso ele esfrega o couro cabeludo como se estivesse alisando uma lâmpada mágica e, de fato, ele acredita que assim algum mau pensamento possa ser afastado definitivamente...

De repente, ele virou-se e disse - antes, embora nunca tenha pretendido medir qualquer pessoa apenas investigando a profundidade da cor dos olhos, ele a vasculhou ali. Num fundo preto, aquoso. Brilho da sela do cavalo. Brilho da roleta de ônibus. Brilho da tela LCD do caixa eletrônico do Banco do Brasil. Coisas assim absolutamente despropositadas vieram. E ele ficou calado. Olhando-a bem lá. Eles eram pretos. Ela tinha os olhos tão pretos que poderia para sempre perder-se dentro deles.

Até que finalmente disse o que havia levado a vida inteira ensaiando. Toda a sua vida contida naquele segundo. Naquelas palavras. Ele disse:

SE VOCÊ QUISER, EU APRENDO A DANÇAR. SE VOCÊ QUISER SEGURAR MINHA MÃO E RODOPIAR NO SALÃO ENQUANTO TODOS ESTIVEREM AQUI E MESMO DEPOIS QUE TODOS SE FOREM... SE VOCÊ QUISER... EU FICO. EU DANÇO. EU FLUTUO. EU DECOLO E LEVO JUNTO OS SEUS OLHOS, VOCÊ INTEIRA.

Ela disse "Brigada, mas tenho hora marcada no oculista". E se foi.

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