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Soldados

Que fazer agora?

Deixa os corpos aí. Depois a gente resolve. Agora, quero beber alguma coisa.

Bebeu alguma coisa.

Agora, comer alguma coisa, alguém.

Comeu.

Agora, quero dormir. Não perturbem.

Sem sobressaltos, dormiu a tarde inteira e o começo da noite.

Agora, pegamos esses corpos e levamos até o outro lado da rua. Lá, atrás da delegacia, tem uma ruazinha sem movimento, ninguém vai lá desde que os assaltos aumentaram na área. A população suspeita dos próprios polícias. Podemos deixar os pacotes num dos monturos. Depois, voltamos para cá. Ninguém vai suspeitar de nada.

No outro dia, nada de suspeitas. Os corpos tinham desaparecidos, os vestígios apagados. Um dos policiais achou que fosse coisa deles e tratou de enterrar um pouco mais longe os três meninos bandidos. Durante breve interrogatório, as respostas de sempre. Eles disseram “não” quando deviam ter dito “sim” e “sim” quando deviam ter dito “não”. Assim escaparam das acusações. Viajaram para fora do Estado. Um deles ficou. Não queria deixar a mulher, que resolvera cuidar da mãe doente.

Dez anos depois, ele confessaria quase tudo. O remorso, a culpa inescapável o conduziram à delegacia em cujos fundos os corpos tinha sido atirados. Depôs por cerca de três horas. Em seguida, foi embora.

Em casa, pediu uma xícara de café novo, apertou bem o nó da corda na cumeeira do alpendre, subiu numa cadeira e dependurou-se. Levou sete minutos até morrer definitivamente. Antes, bebericou o café.

Nunca delatou quem quer que fosse. Morreu de bico fechado.

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