Pular para o conteúdo principal

O que fazer com a ponte?

 

A ponte velha se tornou um problema para a cidade.

Primeiro porque é velha, e Fortaleza detesta velharias. Segundo porque não presta, mas está fincada no chão, suas estruturas afundam na areia da praia como garras de um animal antediluviano, de modo que não se pode simplesmente remover tudo e rebolar no mato, como o gentio faria com qualquer outra coisa sem uso, do vidro do xampu ao sofá esquartejado, da TV enguiçada aos corpos sem cabeça.

Mas com a ponte, não. Nem cai nem desaba. Mantém-se empenada, deteriorada, teimosa. Tombando sem tombar, fazendo par com o Mara Hope, o navio encalhado que a olha de longe há mais de quatro décadas, num casamento sem palavra no qual partilham histórias da ruína da metrópole, cujo tecido urbano vai se reinventando a golpes de superprédios e condomínios “smart”, que alargam as dimensões da capital, na nova corrida para o leste e o oeste, inventando um aldeamento de novas aldeotas, replicando o modelo de tudo que não deu certo.

Arquitetos e engenheiros se postam diante da ponte em pleno meio dia, o vento de agosto-quase-setembro açoitando as pernas e braços. Estão intrigados como se em face de uma esfinge. Perguntam-se o que diabos a ponte é, um mero vestígio de infraestrutura, um monólito que se inclinou permanentemente, uma peça arquitetônica que foi ficando, mais ou menos como uma cadeira ou uma mesa de família. Ou uma memória, dessas que se preservam, um retrato ao vivo, um registro da corrosão do tempo, camadas e mais camadas de ferro e concreto devoradas pelo sal e as reações químicas que se seguem.

Ou não seria nada disso? Nesse caso, o que é, então? Na hipótese de não ser nada, o que é?

Uma plataforma de pouso de naves espaciais e EBEs? Uma colônia de férias para enjeitados pela sociedade? Uma passarela de saltos ornamentais sem técnica olímpica, mas com grande apuro visual? Um Beach Park de pobre?

Especialistas discutem em audiências nos legislativos e palácios de governos sem chegar a consenso quanto à resposta para a pergunta de fundo: afinal, derrubá-la, e a que custou, ou mantê-la de pé, e a que custo também?

Há solução paliativa, um meio termo que atenda tanto ao imperativo cearense de aterrar (aterro, aterrinho, aterrado e toda sorte de derivações da mesma palavra) e ao desejo de parcela da população de conservar algo dos contornos seculares dessa estrutura de uma antiguidade recente?

Digo estrutura por falta de nome, claro, porque não vejo préstimo e vejo, quero e não quero, sinto e não sinto – para ao final me decidir por um caminho que é o de deixar estando, algo como: esqueçam a velha, ela passa bem sem isso, sem a intenção de canoniza-la como artefato, obrigando-a a contar uma história sobre Fortaleza.

Afinal, essa ponte tem valia? Ela importa, e, se sim, para quem? Interrogar-se sobre para quem ela importa é um jeito diferente de perguntar se as pessoas para quem a ponte tem alguma significação e funcionalidade também importam no debate sobre o que fazer com a ponte.

Porque, a despeito do fato de que a ponte está interditada, e ela está, ou seja, não se pode acessá-la sem se colocar imediatamente em risco, há ainda quem a frequente.

Na verdade, muita gente. Criança, jovem e adulto, nos fins de semana e durante a semana, para pular ou pescar ou namorar ou fumar um bagulho qualquer, gente de toda a cidade que vai chegando e quer apenas ficar por ali, na quina da quarta maior cidade do país, o cotovelo do continente, a persiana por meio da qual essa porção de terra chamada América se volta para o oceano num fim de tarde.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...