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Costumes de aldeia



Há dias me vi enfastiado com os hábitos da aldeia, ou seja, o traço passivo-agressivo mal dissimulado de conversas privadas que não se tornam públicas, as entrelinhas do palavreado que jamais ousa dizer o seu nome, os malabarismos retóricos para fazer prevalecer certa acomodação política buarquiana na qual os interesses, por conflitantes que seja, mantêm-se festivamente.

Nessa república cabocla de “nebobabys”, tudo se passa como se reinasse a sensaboria, nada de novo acontece, as tensões apaziguadas e as nervuras, contidas. Mesmo os ímpetos e os jogos concorrenciais de poder se dissimulam no quadrante cearense. É coisa de época, da cultura ou do contexto?

O intelectual se expressa, por exemplo, lançando mão do verbo e do repertório, mas a gramática recobre tudo de uma penumbra arestosa, não se sabe do que fala – mais ou menos como faço agora, quando se pode supor que ou se trata disso ou daquilo, deste ou daquele, desta ou daquela.

Um professor mais antigo costumava dizer que é uma marca da província o maldizer e o malquerer, mas nunca em público, visto que as querelas se preservam à luz da alcova, as desavenças se solucionam mediante acordos de bastidor, as alianças se governam por um regime cujas regras se elaboram no alheamento da maioria.

Isso se devia, acrescentava o mestre, a uma fragilidade da arena pública local, ao adoecimento da esfera por meio da qual as ideias circulam, que, em nosso caso, está mais sujeita às pressões dos encastelados, dos locatários do poder e dos amancebados da monarquia de ocasião.

Talvez sim, talvez não, eu respondia, já que tendo a imaginar que o buraco é sempre mais pra baixo, que a formação de uma inteligência conformada não é algo que se produza da noite para o dia, mas obra de duas ou três gerações de gentis relações entre o pensante e o mandante.

Deu no que eu, isto é, um estado falimentar do circuito crítico cuja vista grossa evita as aporrinhações do dia a dia, onde cada um se compraz com a administração de seu quinhão de influência e de seu torrão de fazenda para tocar até que o ciclo se esgote e outro o substitua, quando então terá de fazer uma remodelagem de interesses e de figura pública, reaparecendo no mercado simbólico com outras vestes. 

É uma pândega, diria Alan Neto, que entendia tão bem de política quanto de futebol.

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